09/05/2012
Titão sapateiro

Saudade vem..., saudade vai ...,quanto mais o tempo passa, mais fico olhando para trás...Fui e sou um eterno apaixonado por botas de canos longos, desde menino. O primeiro par que ganhei era surrado e bem maior que meu número. Era da cor marrom, tendo os canos lisos nas extremidades e sanfonado no meio.
  Após esperar meus pés crescerem por quase três longos anos, meu pai levou-as até à cidade para uma “gariba” geral. Esperei por uma eternidade - sessenta dias - para ter notícias da mesma, pois além do velho ir pouco à cidade, às vezes que ia, esquecia de apanhá-las no sapateiro.
Um dia minha ansiedade explodiu e tomei a decisão de ir com meu pai buscar pessoalmente o tão desejado par de botas. Ao chegar à sapataria deparei-me com uma figura de porte mediano, forte, cabelos negros penteados para trás, sentado num banquinho de sapateiro atrás de uma baixa mesinha.
Mesinha esta cheia de divisões quadrangulares onde continham uma infinidade de tachinhas. Detalhe: uma dessas divisões era usada como cinzeiro. Assim conheci o Titão sapateiro, que por sinal, era também um excelente goleiro do time local.
Não era de muita conversa, tinha um eterno ar de desconfiança e um pavio curtíssimo - levar desaforos pra casa, nem pensar! Antes de abrir seu imenso coração de menino a quem se aproximasse pela primeira vez, estudava cautelosamente o interlocutor.
Eu achava curioso vê-lo trabalhando sem camisa, apenas com um avental de couro para se proteger de uma possível escapulida da afiada faca de sapateiro, usada para cortar solas e couros. Na sua boca, além do cigarro continental, sem filtro, tragado com freqüência, portava meia dúzia de tachinhas, usadas para pregar as solas dos sapatos, num pé de ferro apoiado em suas coxas. Creio ser este um hábito comum entre estes profissionais, pois até hoje observo este costume.
Num salão pequeno iluminado apenas por um pendente, ele, com seu carisma, reunia gente de todas as classes sociais - artistas de passagem pela cidade, políticos, empresários, aposentados e principalmente amigos. Numa ocasião, depois de conhecê-lo há algum tempo, perguntei-lhe porque ele não tirava as teias de aranha do salão. Disse-me: - Se tirar dá azar, deixem-as viverem em paz, elas comem os mosquitos e me protegem das picadas, além de me fazerem companhia. Está certo amigo! Afinal as aranhas vivem daquilo que tecem, não é mesmo?
Mas azar mesmo foi o meu ao perguntar pela minha tão sonhada bota. A resposta foi seca, sem nem mesmo me olhar na “cara”: - Sua bota não dá conserto, só dá para aproveitar o cano. Fiquei sem entender! A primeira coisa que veio à minha cabeça foi: este cara está achando que não tenho dinheiro para pagar o conserto. Repliquei na bucha: - mais eu tenho dinheiro para pagar - pode arrumá-la.
Fez de conta que nem ouviu, continuou de cabeça baixa pregando a sola de um sapato. Depois de um minuto de profundo silêncio disse-me: - Porque você não fala para o seu pai encomendar uma nova? Eu mesmo faço pra você.
  A partir deste momento passei a gostar do Titão. Convenci meu pai, e meu primeiro par de botas pretas foi finalmente confeccionado. Conversando com ele muito tempo depois, perguntei-lhe porque mesmo sem olhar em meu rosto sugeriu-me fazer botas novas. Disse-me: - Eu senti na sua voz o quanto você queria um par de botas, e fiquei durante aquele minuto pensando como fazer para não entristecê-lo ainda mais.
  Apesar de eu nunca ter feito botas antes, pensei que seria uma boa oportunidade de começar a fazê-las. E as fiz pelo preço de custo.
Pois é, amigo Titão, suas palavras podem não ter sido exatamente estas, mas a sua solidariedade com a minha causa foi exatamente assim. O tempo passou e você, graças a Deus, continua vivo e forte. Estas boas lembranças jamais se apagarão de minha mente, muito menos daquele caixote de madeira usado como banquinho por todos aqueles que lhe visitavam.
  Era especial e disputado! Lembro-me com saudade da sua pequena, mas aconchegante sapataria, quando no final do expediente ao cair da tarde, seus fiéis amigos se reuniam para tomar bons tragos de cachaça ouvindo o programa sertanejo “Na beira da tulha”, com Tonico e Tinoco. Bom tempo aquele onde nosso fígado era “zero bala” e agüentava desaforo! Bom tempo aquele em que a amizade custava muito barato além de ser duradoura e verdadeira!
E VIVA O TITÃO SAPATEIRO!
[email protected]

 


Osvaldo Piccinin

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