09/05/2012
Na soleira da porta

Muita gente, principalmente os mais jovens, talvez não saiba o que é uma soleira. Trata-se da parte inferior da porta da casa, rente ao chão. Termo muito usado pelos interiores do Brasil, principalmente no meio rural. Tem a serventia extra de agregar pessoas, entre outras coisas.
Pois é, esta parte inferior da porta da frente, da casa do sitio onde eu morava, é que eu quero homenagear nesta crônica. Soleira esta, que se transformava numa verdadeira sala de bate -papo a céu aberto. Ao cair da noite e nos feriados aconteciam as costumeiras reuniões. Ali se passava a limpo a vida das pessoas, contavam-se histórias, causos e os últimos acontecimentos.
   A vida pregressa de nossos familiares e dos entes queridos, que já haviam nos deixado, estavam sempre na pauta. Adorávamos saber como nossos antepassados viveram na Itália e porque vieram “fazer a América” no Brasil. Ouvíamos estarrecidos que foi de navio, um meio de transporte muito distante da nossa realidade lá na roça.  Fugindo da miséria e da fome, devido às sucessivas guerras do século passado, emigraram com suas famílias  apenas com a roupa do corpo e a esperança de vencer. Muitas outras coisas do cotidiano eram, ali, passadas em revista.
Tratava-se de um ritual. Ao término do jantar, vindos do trabalho duro na roça, nossos avós, tios e vizinhos reuniam-se na porta da frente da casa para “tomar uma fresca” e prosear, já que não existia televisão. Sentados em velhas cadeiras, troncos de árvores e na própria soleira da porta, a conversa corria solta. Isso até o primeiro participante, quase sempre o mais velho, dar um sinal, através de uma caprichada bocejada, que estava na hora de se recolherem para o merecido descanso. Domani (amanhã) tinham de enfrentar novamente a labuta no campo.
As crianças, medrosas como eu, se aconchegavam no colo ou se agarravam às pernas dos pais, para se protegerem das tenebrosas estórias de saci, bruxas, mula sem cabeça e de assombração, contadas ali. O difícil, depois, era dormir em quarto separado. Paieeê tô com medo! Eu quero beber água! Assim chamávamos os pais no quarto ao lado, para amenizar o “cagasso” que sentíamos.
Na soleira, também aprendíamos as lições de uma boa educação, tal como respeitar os mais velhos, cedendo-lhe nosso lugar para que pudessem sentar assim que chegassem à roda. Aprendíamos a cumprimentar, a todas as pessoas, tanto na chegada como na saída e muitas outras coisas que nos ajudaram a moldar nosso caráter num sólido alicerce da vida.
Foi ali, na soleira, que senti a comoção pelo suicídio de Getúlio Vargas e a alegria na vitória de Juscelino Kubicheck de Oliveira. Aquele que prometeu fazer em cinco anos o que os governos anteriores não fizeram em cinqüenta. E fez! O que dizer da vitória de Janio da Silva Quadros, quando eleito presidente do Brasil, tendo uma vassoura como símbolo? Quanta esperança por dias melhores!  E quanta decepção com sua renúncia, logo em seguida!
  Ouvi de um tio, que morava em São Paulo e nos visitava de vez em quando, por sinal freqüentador assíduo da nossa soleira, uma frase que jamais esqueci: “amigos são como aves de arribação, quando faz bom tempo eles vêem , quando faz mal tempo eles vão”!
Na soleira, minha mãe também, recebia os mascates de roupa, o fotógrafo lambe - lambe e tantos outros vendedores de bugigangas. Ali recebíamos, com alegria e o coração aberto, todos quantos nos visitavam; parentes vindos de longe; amigos e o médico da família a bordo de seu automóvel Fordinho 29. A tristeza, também, passava por lá de vez em quando, mas dessas não quero me lembrar neste momento.
  Mas nenhuma dessas passagens me marcou tanto, como o dia que mudamos para a cidade. Deixei para trás minha rica infância, meus amigos de escola, de pesca de lambari, de armar arapucas, das caçadas com estilingue, das brincadeiras de pique, dos banhos de rio e tantas outras riquezas que a roça me proporcionou.
Ao ver nossa pobre mudancinha sendo carregada, através da soleira, cacareco por cacareco num velho caminhão, eu chorei. E como chorei!  Entre acenos, soluços e lágrimas sentidas, partimos. A poeira da estradinha de chão, num final de tarde, foi testemunha da minha tristeza e do destino, a mim, reservado. Mal sabia que esta separação, seria para sempre. Meu cordão umbilical foi cortado pela segunda vez e o meu porto seguro, ficou apenas na lembrança!
  Quanta saudade eu sentia, nos primeiros dias, distante de minhas raízes.  Confesso que ainda sinto, quando na memória me vêm, estas doces lembranças!  Foi uma das épocas mais marcantes e ricas de minha vida, apesar de toda simplicidade que vivíamos. As pessoas tinham pureza na alma e Deus no coração!
E VIVA A SOLEIRA DA PORTA DA MINHA INFANCIA!
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Osvaldo Piccinin

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