20/03/2014
Medo do escuro

Eu deveria ter uns doze ou treze anos. Morria de medo de dormir no escuro. A lâmpada da cozinha tinha que ficar sempre acesa, ou então, a velha e antiga lamparina permanecer queimando naquele pequeno oratório de madeira, no alto, num canto do quarto. Em muitas madrugadas fui correndo  para a cama da minha Madrinha, minha mãe querida  de coração e alma. Era o pavor da  escuridão e mais precisamente, das “almas de outro mundo”.
-- Os mortos não fazem mal a ninguém. Quem faz são os vivos. Dizia ela.
Mas e dai? Esta afirmação não abrandava o  medo que eu sentia deles.
Foi então, que ganhei aquele pequeno abajur de metal.  Era vermelho e com uma  abraçadeira para ser preso à cabeceira da cama. Ficou muito tempo sobre um criado mudo, ao meu lado, aceso a noite inteira.  Foram meses de tranquilidade com a  lâmpada fraquinha, me acalmando e diminuindo  aqueles meus temores... Dos mortos.
Num dia excepcional, cheguei da escola com uma relação de materiais a serem comprados. Minha Madrinha que nada falou, guardou a lista numa prateleira do guarda comidas da cozinha e eu entendi o seu silêncio. Os tempos eram de dificuldades e de  dinheiro muito  curto . Por isso a preocupação. Conclui que ela precisaria lavar mais roupas para fora, aceitar mais encomendas de costura, crochê e fazer mais faxinas para compensar o gasto. Então, à noite, com a penumbra do meu abajur, esqueci meus temores funestos e me concentrei em encontrar uma solução para o drama. Várias ideias emergiram e uma, finalmente, vingou. No dia seguinte coloquei em prática. Cortei dezenas de quadradinhos de cartolina, enumerei, coloquei num saco de papel e sai vendendo “o prêmio” a ser sorteado entre os compradores. Vendi rapidinho. Fiz o sorteio entre o grupo de crianças e entreguei “a prenda” ao vencedor cujo nome já nem lembro. Talvez por tristeza, eu tenha preferido esquecer aquele momento em que tive, pela primeira vez, que renunciar a alguma coisa na vida. E no mesmo dia entreguei ao premiado, com dor no coração, o meu pequeno e lindo abajur, tão companheiro nas minhas noites escuras. Nunca mais o veria enfeitando meu criado mudo e nunca mais dormiria  sob a sua luz protetora. Teria que, sem ele, enfrentar e encarar todos os meus medos, possíveis e imagináveis.  Foi o preço pago por ter rifado  aquele objeto tão precioso.
-- Você não devia ter feito isso menina.  Disse minha Madrinha ao descobrir a façanha.
-- Eu ia dar um jeito, não precisava se desfazer do seu presente. Completou com sua habitual generosidade.
Mas, já estava feito e sem poder  voltar atrás, oficializei então, o meu primeiro ato de renúncia. A luminária que, não só iluminou meu quarto, meu sono e sonhos, me levou a gerar aquela brilhante ideia. E desde aquele dia, iniciou-se  em mim o sentido de luta, de responsabilidade e das perdas inevitáveis da vida.
Após mais de 40 anos  deste acontecimento, olhando hoje  minha casa, entendo a minha fixação por abajures. Tenho muitos. Espalhados por todos os cômodos e espaços disponíveis. Gosto de vê-los acesos, dos reflexos que eles proporcionam, da penumbra, da claridade fosca, opaca e da sensação doce do aconchego que eles transmitem ao anoitecer. Acendo-os frequentemente e apago-os para dormir. Na escuridão,  já não me apavoro  mais com “ as almas do outro mundo”. Nesta mesma escuridão, oro por elas sem sentir tremores ou temores, pois minha convicção espiritual me dá plena certeza de  que jamais me prejudicarão.
Em sintonia absorvo delas,  unicamente, a proteção e a energia que  clareiam a minha vida. Sem a insegurança antiga, lembro-me da luz  daquele  simples e encantado  abajur, iluminando  as minhas noites de  criança inocente e assustada. E durmo sem medo do escuro.
Fatima Chiati



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