Crônica: O Crime não compensa

Chegara esbaforida e comentava com meu amigo a necessidade de aprovação naquela matéria. Era dia de prova. Dia duro. Último semestre daquela matéria. E a verdade era uma só: eu não sabia nada. Ainda tive que convencer a professora de que eu poderia fazer aquela prova.

É melhor explicar antes: contingências da vida, percalços, me fizeram perder quase todo o semestre. Não é que eu não soubesse nada de propósito, ou simples vagabundagem. Eu simplesmente não havia assistido a boa parte das aulas. Só isso. A despeito de toda e qualquer justificativa a cara de facínora daquela mulher me assustava. Passar por todas as vicissitudes da vida e ainda não ser compreendida! Isso é a rotina acadêmica.

Sentamo-nos, difícil acomodar minhas muletas, mas nada comparado ao que estava ainda por vir. Meu amigo achou por bem sentar-se providencialmente ao meu lado. A prova já iniciada impregnava o ar que de tanta tensão parecia já palpável. Eu quase podia apanhá-lo bem a minha frente. Quisera apanhar uma boa idéia para dissertar ali naquele papel branco. Mas, qual o quê. Pior, o barulhinho nervoso dos lápis despejando as idéias de todos ali nos papéis e das borrachas furiosas que apagavam e a retomada do ritmo dos lápis novamente. Esse ambiente estava me sufocando. A megera me olhava com um olhar de triunfo: “Não disse? Não te falei que você não ia conseguir?”. Pensei em desistir,não havia saída. Meu amigo cutucou-me com o braço. Oferecia-me ajuda, leia-se cola.

Eu? Colando? Nunca na minha vida. Não que não precisasse. Ao contrário, precisava como nunca . Mas me apavorava a idéia da facinorosa apanhar-me em flagrante delito. Pior, reconhecia naquela oferta humilde do meu amigo uma saída nada honrosa para mim que sempre fora tão orgulhosa do meu desempenho acadêmico. Para onde iria minha tão propagada independência intelectual? Não. não podia aceitar. Outro cutucão. Meu Deus, ele já tinha terminado a prova! Não havia mais nada a ser feito. Ele hesitava em entregar a prova na esperança de ainda poder ajudar-me, bastava que eu me ajeitasse um pouquinho, meio inclinada para o lado dele. Vendo que eu resistia bravamente à tentação veio a última e mais forte cotovelada que gerou involuntariamente o meu gemido de protesto. A professora, bem a nossa frente, percebera o terrível dilema que angustiava meu amigo e prontamente ofereceu a solução: “Se já acabou, pode ir embora.” O coitado levantou-se, caminhou até a mesa dela e ainda mais uma vez olhou para mim, hesitante. Não podia deixá-lo naquela situação. Acenei-lhe levemente com a cabeça. Vai em paz, meu filho. Vai com Deus. O crime não compensa.

Vanessa Faria

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