Versão para impressão

19/01/06
Tapar dos olhos

“Deixem que os mortos enterrem seus mortos”. Essa frase por si mesma, contundente como é, explica todo seu significado para poucos que se esforçaram para entendê-la, para compreenderem e avaliarem a grande maioria dos desentendidos dela. Se não se soubesse serem eles desentendidos, seria estranho perceber a ausência de críticas deles contra o autor da frase. Como? Poderiam perguntar. Ele que era todo amor, o perdão, era a salvação, como não se condoeu com a morte de um ser humano, como não sentiu pesar pelos familiares do morto? Se o morto, familiares e parentes fossem pecadores, não veio Ele para perdoá-los e resgatar seus pecados? Por que nem ao menos participou de um ritual para o encaminhar d’alma do morto para Deus?
Essas perguntas se surgissem seriam heréticas, mas, não foi tanto por isso que não surgiram.Pessoas sempre estufaram o peito quando repetiram a frase, tentando demonstrar terem-na entendidos e, enaltecendo o autor dela por tão profunda sabedoria, entretanto, nunca se aventuraram a traduzi-la com a verdade que trazia.
Tudo ficou apenas pela frase “deixem que os mortos enterrem seus mortos” deixando de lado a importância dos vivos que eram mortos enterrando seus mortos.

Quem chegou até aqui e não sendo morto, terá tido subsídio para suas reflexões para seu auto-avaliar e se questionar se precisa ser mais vivo.
Mas, continuando, viajando pelos efeitos das instituições funerárias, elas estão por aí também para atender o público nas exigências acima do necessário e básico dos sepultamentos. Alguns primam muito pelo luxo com que seus entes queridos devem ser “homenageados” pela passagem de suas mortes. E na morte, vemos muitas coisas para um e quase nada para outros quando pela morte, também fica patente a desigualdade social. Alguns facilmente quitam os encargos de um sepultamento quando outros ficam endividados e até devendo favores.
No ritual por intenção do envio de alma para junto de Deus, quando sendo para quem foi proeminente enquanto vivo como ainda são seus familiares, não é difícil vermos um “intermediário” oficial. Quando das ausências de proeminências, é muito fácil vermos substitutos consagrados para o ritual e Deus nada tem contra.

O autor daquela frase tão profunda sabia da importância do ritual pela intenção das almas dos falecidos? Tais rituais, Ele, os incentivava? Se literalmente se entender a frase, parece que não. Tais rituais não foram criados bem depois de sua morte? Então, supõem-se serem mais sábios que Ele seus inventores, para confortarem as famílias no desespero de suas perdas irreversíveis.
“Buscai a verdade e ela vos libertará”. Mas, quem de nós deseja mesmo a verdade?
Ela não seria decepção ao deixar-nos nus diante da realidade que nos deixaria vazios sem o amor que tanto temos pela nossa roupagem?
Não seremos nós os mortos que enterram seus mortos? Nós, corpo e alma, também somos matéria das matérias e só nos diferenciamos delas porque as pegamos e moldamos conforme nossa conveniência. Esquecemos das conveniências da alma e as tornamos como morta neste mundo das sensações e por isso, procuramos compensações onde adquirimos “roupagens” para ela viver por aqui e se apresentar depois de desencarnada em “outro mundo de roupagens daqui já confeccionadas”.
Se nós somos os mortos, apenas imitamos os nossos mortos.


Altino Olímpio