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08/05/2012
Fibra de peão

Bons tempos aqueles quando a gente não tinha noção que ele iria passar tão de pressa. Os dias eram longos e as noites intermináveis, principalmente, com dor de dente. Um ano demorava uma eternidade para passar. O desejo de fazer doze anos era um sonho, mas a verdadeira obsessão era chegar aos dezoito. Aí sim, a gente conseguia o passaporte da liberdade e ganhava asas para voar. As satisfações aos pais diminuíam muito, podíamos dirigir ir para as brincadeiras dançantes - assim chamavam-se as baladas daquela época.  Tomar uns tragos com os amigos, sem hora para voltar, viajar com eles para a praia, acampar etc. Queríamos na verdade eternizar estes momentos. Naquela época, por total falta de informação, ou talvez por ignorância, para nos mostrarmos adultos arriscávamos umas baforadas em um Continental sem filtro, ou mesmo um Macedônia que era o famoso arrebenta-peito, mas quando na roça, era indispensável o cheiroso “paieiro”.

Estávamos na jovem guarda, era uma “brasa mora”, “fala aí bicho”, estas e outras expressões eram incorporadas ao linguajar de nosso dia-a-dia e a gente vivia feliz, porque nossas referências eram poucas, e nossos sonhos modestos se comparados aos dos jovens de hoje. O que eu mais desejava era sair da roça, fazer um curso superior, arrumar um bom emprego, comprar um fusca, ter filhos e, se desse, depois de estar “ganhando bem”, comprar a casa própria, via um financiamento do BNH e uma linha telefônica, coisa raríssima e cara.

Fui conhecer televisão quando tinha 12 anos, mais precisamente em 1962, na verdade era “televizinho”, porque tínhamos que nos acotovelarmos no batente da janela do Senhor Nenê Gatti, para assistirmos programas do tipo “Cidade Contra Cidade”, “Jovem Guarda”, “Chacrinha”, etc. Roberto Carlos era nosso ídolo maior; éramos capazes de passar um domingo inteiro ouvindo suas músicas numa sonata movida à pilha, aliás, gastava uma barbaridade. A grande emoção era ver o discão de vinil rebolando no prato da vitrola tocando as músicas que curtíamos naquelas tardes de domingo, embalando belos sonhos e belos dias.

Agora, gostoso mesmo, era brincar o carnaval. Pelo fato de morar numa pequena cidade com parcos recursos, preparávamos o ano inteiro para este evento. Eu era um dos primeiros a chegar no clube Floresta, na verdade eu chegava junto com o porteiro para reservar uma mesa em lugar estratégico onde pudesse ter uma ampla visão do salão e escolher com quem iria dançar, e tem mais, a moça escolhida não podia dar “tábua”, ou seja, negar-se a dançar com aquele que a escolheu, ao menos que fosse comprometida. As marchinhas eram decoradas antes da festa por serem amplamente divulgadas nas rádios e revistas, aí só íamos embora com as “Pastorinhas” e a “Estrela Dalva”, lógico, depois de cair no “Rali Gali”.

Para nos refestelarmos nada de piscina, isso era uma raridade, nem rico tinha, somente em clubes chiques que eu jamais conseguia entrar. Claro, porque nunca dei conta de ser sócio. Aprendíamos a nadar em rios e lagoas, e era uma delícia a sensação de liberdade, porque nadávamos pelados e sem medo de ser felizes. Mesmo assim tinha que ser escondido dos pais porque no entender deles era muito perigoso e poderíamos morrer afogados.

Apesar de estudar sempre nos melhores colégios, disso, meus pais nunca abriram mão, nas férias eu tinha que ajudar o velho na roça cortando e carpindo cana, dizia ele que isso era para eu saber “quanto custava ganhar a vida” e aprender a “dar valor para às coisas”. Agora vejo que ele tinha razão, apesar das inúmeras bolhas na mão advindas da falta de costume do manejo da enxada, foice e facão. Era uma vidinha sofrida, nosso almoço na roça era frio e vinha servido na marmita onde comíamos sentados no barranco, no cabo da enxada ou num saco de estopa estendido no chão. Papel higiênico? Nem pensar. Fui conhecer o tal de tico-tico, por sinal, uma verdadeira lixa, aos 16 anos de idade; para este fim, o mais usual era as folhas de mato, papel de pão e jornal; este último, sim, uma raridade, tanto que meu tio, por economia, usava os dois lados. Não acho justo omitir e desprezar o velho sabugo de milho, que numa emergência também quebrava o galho. Graças a Deus, isso é passado.

Como dizia meu pai italiano: “Alegria de pobre, é o dia que se mata porco”. Era o dia da fartura; fazíamos sabão caipira num tacho no terreiro; dávamos uma porção de carne para cada vizinho e passávamos literalmente enchendo lingüiça praticamente o dia todo. Depois, as mesmas eram colocadas para secar em um varal, acima do fogão de lenha, porque não tínhamos geladeira, e ficava uma delícia por ter um gosto defumado e ficar conservada por longo tempo.

Sabíamos todas as músicas sertanejas, principalmente aquelas que nos remetiam às lembranças de nosso dia-a-dia, como a lida do gado, paixões recolhidas etc, mas o verso que mais marcou minha vida no qual me vejo retratado até hoje é:

“Não sou poeta

Sou apenas um caipira

E o tema que me inspira

É a fibra de peão”

 

 

Osvaldo Piccinin.

Eng.Agronômo.e empresário

osvaldo @apoiorural .com.br


Osvaldo Piccinin