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09/05/2012
Estrada boiadeira

Numa casinha de taipa, coberta com folhas de babaçu, junto a uma antiga estrada boiadeira deu-se esta passagem. Encravada no pé da serra, numa curva onde o rio das araras desaguava no rio dos peixes. Resistia ao tempo com bravura, talvez por cumplicidade. Ao redor frondosas arvores onde os passarinhos cantavam e procriavam na primavera. Aí morava um velho boiadeiro por nome Cícero Romão, mais conhecido por Veio Ciço.
Caboclo forte e sacudido - beirava oitenta anos.  Muito espiritualizado. Recebia a todos com um largo sorriso e muitas histórias. Numa noite escura de verão, parei ali e pedi pouso, pois a chuva forte e o avançado da hora me impediram de seguir viagem.  Corria o ano de 1975, e eu era um recém formado, engenheiro agrônomo, com apenas vinte e poucos anos. 
Para enfrentar o Nortão de Goiás, eu usava um fusca, que apesar de valente, me deixava na mão de vez em quando. Por isso a cautela em só prosseguir viagem no dia seguinte, pois a próxima cidade ficava distante dali, por estrada de terra.
O velho goiano convidou-me para jantar, não sem antes me oferecer uma bela lapada de
cachaça. Confesso ter sido o trago mais gostoso de toda minha vida, tinha um sabor de amizade, boas vindas e muita saudade - tanto minha como dele. Antes do jantar – tatu galinha com palmito de guariroba - ele empunhou a viola pendurada na parede e pediu licença para cantar uma música em homenagem à estrada boiadeira, onde viveu praticamente toda sua vida. 
Acendemos o candeeiro e uma suave música brotava de sua aveludada voz, tendo como fundo as labaredas de um fogão à lenha. “Uma casinha junto ao estradão, certo dia eu parei ali, vem minha velha vamos recordar, quantas boiadas eu já conduzi, não é de ouro meu berrante não, mas para mim ele tem mais valor, porque foi ele quem me deu você, e foi você quem me deu tanto amor.”
Versos tristes, mas soavam familiar para mim. Porque o senhor chora?  - indaguei. Aí então, me contou sua breve história.
Minha vida foi viajando por esta estrada conduzindo boiadas, do sul para o norte e vice e versa. Quando passava neste local, onde estamos agora, eu fazia uma parada para ver Noquinha, uma formosura de mocinha, que anos mais tarde veio a ser minha única esposa.
Vivia alongado por este oco de mundo, sem prazo para voltar. Eu nunca quis compromisso sério. Casamento só quando largasse a lida. Foram quase dez anos de espera, até juntarmos os panos.
Construímos uma família e ficamos morando aqui no encontro das águas, por alguns poucos anos. No nascimento de nosso terceiro filho, por falta de recurso, ela partiu para a glória do senhor. Senti demais da conta, sua passagem e confesso quase ter morrido junto, porque ela era tudo para mim.
Fiquei sem condições de educar as crianças e pedi para um fazendeiro amigo criá-los e educá-los na cidade. Hoje são doutores como o senhor, um médico, outro advogado. Eles sempre vêm me visitar e fazem muita força para eu morar com eles na cidade. Mas confesso que não tenho vontade, pois quero terminar meus dias por aqui mesmo, acho que nunca me acostumaria viver em outro canto.
Continuei a ouvi-lo com muita atenção e bastante emocionado. Pedindo licença levantou-se e trouxe-me sua conservada e completa tralha de peão, na esperança quem sabe um dia, o tempo volte. Após tocar seu berrante com maestria disse-me contemplativo: - O progresso destruiu meu sonho, passo os dias vendo caminhões boiadeiros. Onde está o grito da peonada? Cadê o toque do berrante? Tudo se acabou. Nem poeira eu vejo mais.
É nesta solidão que a inspiração brota no meu peito, e passo horas cantarolando as poucas modas de viola que aprendi nesse mundo. Só assim não vejo o tempo passar!
Parti no clarão da aurora, antes dele acordar para não me emocionar novamente. Nunca mais passei naquela estrada e também não pude saber qual foi o final desta história. Seu berrante e sua viola devem ter se calado para sempre. Só a saudosa estrada guardará a lembrança do cenário e do tempo que passou!
E VIVA A ESTRADA BOIADEIRA!
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Osvaldo Piccinin