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13/10/2017
A bituca de cigarro

Que cigarro é prejudicial a saúde todo mundo sabe mas fumante, é fumante e encontra 10.001 motivos para não parar de fumar e ponto.

O desastre: noite escura (estava mais escura que o normal já que o que vem na sequência apaga totalmente a luz do raciocínio). Avançada hora, estabelecimentos trancados e o único maço de cigarro apita sinal amarelo: acabou aquele pacote com 20 maços que comprei, como quem estoca para uma eventual retirada do mercado cigarreiro mundial.

Atonitamente vejo que tenho 2 porções pequenas de tabaco picado e enrolado, devidamente industrializado, dentro do envoltório de papel pintado com aquele nome bonito.

Desenganados cigarros na caixinha desamparada em cima da mesinha do canto no “fumódromo”, digasse de passagem “santo fumódromo”, esconderijo secreto para devaneios e aquele orgasmo tabagistico.

O desespero escorre pelos neurônios atingindo o coração que dispara de agonia pela iminente abstinência do companheiro de todos momentos solitários, solidários, de baladas, cafezinhos e a vontade de fumar um, só unzinho torna a madrugada um martírio. Bom, a verdade é que não é bem unzinho, já que tenho 2. Preciso da caixa inteira. Não tem jeito. Tarde demais.

Então tá! Fumo um e amanha cedinho, bem cedo mesmo, compro na lojinha meia boca aqui do lado, afinal cigarro é cigarro, vêm bem embalado nas caixinhas, lacrado, não tem perigo de contaminação! Está escrito que mata, causa câncer, impotência mas esta escrito na caixinha, eu fumo o que está dentro e não a caixinha”!

Abro os olhos freneticamente. Acordei? Que bom! Agora posso respirar: nicotina, com certeza!

Vou fazer o que preciso, em verdade, acho que não farei nada. Melhor vôo de potente vassoura volante (dizem que toda bruxa tem uma e cigarro não é coisa de anjo, certamente a minha aparecerá neste momento caótico). E, direto à salvação de minha ansiedade para comprar o vício, o alento, o amigo! Brilhante idéia, assim não tem tráfego!

Espera, tenho que deixar as crianças na escola.

Cigarro, preciso do meu cigarro!

Bom tem este último que deixei para hoje, sabia que a ausência do maço comedor dos pulmões tornaria latente a premência de fumar! Melhor enquanto eles tomam café da manha eu me escondo e fumo aquele que guardei para estado de emergência. Vai sem a xícara de café mesmo.

O último sobrevivente e adeus ao pacotinho lindo!

Crianças despachadas na escola, os pés formigando para correr ao encontro do pauzinho fatal. A esta altura a vassoura ficou para trás, vou de carro e paro no meio da rua, se não tiver saída.

A birimboca está ali, não é bem uma lojinha, acho que nem chega a ser um bazar mas posso vê-la, estou perto e minhas mãos trêmulas exalam suor de emoção pela imagem de agarrar o pacotinho, destroçar aquele plástico e admirar aqueles branquinhos rolos de tabaco (esquece este papo de mais de 4000 toxicidades, não pararei de fumar hoje).

Não! A birimboca da esquina esta fechada. Choque!

Faltam 2 horas para abrir e não há outra por um raio de no mínimo 10 km.

Padre fuma? Tem uma igreja pertinho. Será pecaminoso demais dar um pulinho lá e perguntar? Esquece, teria que confessar quantos anos faço isto, depois o sermão e sou uma obstinada não arrependida.

Ação pessoa concentrada: procura!

Em frenesi busco por todos os buracos do carro “mais um último”, pode ser metade. Nada.

Abro a porta de casa e o big bang começa: malas de viagem, bolsas, “deve ter um esquecido”. Ahhh! Aquele porta trecos quebrado que coloquei no fundo do armário do banheiro, ali tem. Claro! eu usei como cinzeiro na noite que fumei trancada no quarto enquanto ouvia música brega alimentando minha depressão. Vazia? Como assim? Quem mexeu aqui? Quem mandou limpar meus pertences pessoais, que falta de privacidade.

Em menos de 1 minuto: tudo revirado e nada de cigarro, nem o eletrônico que comprei há séculos quando estava na vibe de mulher fitness. Sabia que esta geringonça não serviria nem para um caso extremo.

E agora? Não dá para aguentar a abstinência e meu corpo inicia todos os sintomas que aquele amigo que parou de fumar, contou ter sentido no primeiro ano sem cigarro. As fibras musculares do meu coração começam contrair.

Estou reduzindo, o ritmo de desintegração molecular acelera.

Estou órfã! Sem abrigo, largada ao mundo sem todas aquelas substâncias tóxicas descritas no relicário cigarreiro, dissolvendo minhas células.

Sento no fumódromo, o cheiro vai me acalmar, melhor levo um ansiolítico para o caso de uma crise histérica.

Nossa, que linda a natureza, inala, exala, medita!

Como não pensei nisto antes? Tabaco é planta! Este jardim é farto de folhas, uma poderia ser tabaco. É ilegal plantar tabaco? Claro que não, tem gente que até mastiga! Olvida, eles não assentariam tabaco neste espaço “fru-fru”.

Já sei! Isto é um complô! Querem internar me num sanatório. Foi tudo planejado! Terei uma síncope nervosa e adeus mundo dos normais, apodrecerei num lugar cheirando éter diagnosticada como “fumante enlouquecida”, expatriada do mundo das cigarrilhas, cigarreiras, música com cigarro, poesia com cigarro, filosofia com cigarro, arte com cigarro, ler com cigarro. Fui pega numa ursada fatal!

Inala, exala, medita!

Impressionante, todo manha passa o equivalente a população da China em frente meu espaço sagrado e hoje, justo hoje, não tem uma alma, que seja um fantasma fumante para exercitar meu “ato pedinte”. Seria perfeito mostrar que falo, sou humilde, só imploraria por um pouco de C10H14N2 (sim, pesquisei a fórmula da nicotina, decorei na esperança de ter nicotina em algum objeto da casa e bastaria quebrar, colocar num pedacinho de papel enrolado e respirar, inalar né?). A esta altura poderia ser papel carbono.

Senhor, será que morri? É isto? Pior: morri e estou no purgatório, pagando pelo pecado de cada cigarro fumado. Se pereci, por meus cálculos não poderia ter chegado ao paraíso pelo excesso de nicotina impregnada no meu corpo. Então, também não é o inferno porque não posso fumar e no inferno com certeza tem cigarro. Se foi este meu trágico fim, melhor procuro o Tribunal local da dimensão em questão. Sim! Peticionarei para o dono deste lugar e queixarei minha indignação pela falta de respeito a uma pobre fumante.

Para tudo! Respira, inala, exala, lembra das aulas de yoga, purificação do corpo. Pensa. Raciocina!

Nossa, tem alguém chegando! Me penduro na grade do fumódromo, jogo o cabelo para o lado (fica mais sexy!), vou sorrir. Por precaução olho no bolso das calças do cidadão (ã) para verificar alguma protuberância que indique um tabagista!

Melhor, pergunto em francês, fica mais chique:

“Monsieur, avez-vous une cigarette?” Acho que é assim que se fala. Mas também posso fazer sinal de fumaça, mímica, não importa, se concentra e se joga!

Que acaso interessante, é a velha chata que reclamou do cheiro afrodisíaco, perfumoso da bituca para o síndico.

Não sobra alternativa!

Olho o cinzeiro que, por sorte, não limpei no dia anterior!

“Algum não fumei cem por cento”.

Nojo? Limpeza? Aula de ciências, biologia explicando os malefícios deste vicio?

Vão tudo para a casa do p…paraíso, sim, lá não tem cigarro!

E se alguém resolver desfilar aqui na frente justo agora que estou a ponto de por a mão na massa?

Não importa, é por boa causa, preciso prevenir um infarto.

Começo o ritual fumástico xexelento.

Viro a cadeira, coloco mil apetrechos em cima da mesinha e “vai na fé”!

Abro um saco, jogo as provas do crime perfeito e com um guardanapo limpinho reviro aquele troço de “nicotine” pura.

Tem alguns que posso acender só para aliviar esta sensação do umbral.

Pego a bituca, limpo cuidadosamente o pó, a cinza, ahhhh, não importa o nome!

Só pode ser zombaria! A vizinha abriu a porta falando feito gralha no celular. “Sai dai D. Maria, para com esta ladainha de mexeriqueira, pelo amor ao monóxido”. Obrigada, ouviu meus gentis pensamentos e calou e boca. Que bom, sumiu também!

Momento perfeito.

Olho para os lados mil vezes para ter certeza de que ninguém verá este ato asqueroso. De qualquer maneira posso esconder a mão embaixo da cadeira se for pega em flagrante atentado a saúde mental alheia. Claro, alheia porque para mim não interessa se pensarão que perdi a noção de ridículo. O vicio é meu, compro com meu dinheiro, pago minhas contas, dane-se!

Alguém passa, coloco a bituca embaixo da blusa que a esta altura já esta imunda de areinha cinza.

“Anda logo senhor”, vaza da sacada de meu fumódromo.

Afinal!

A bituca esta pronta para ser consumida até desaparecer qualquer manifesto da prova do tabagismo em ultimo estágio.

Acendo quase queimando o nariz, cabelo, orelha.

E aquela tragada finalmente acontece.

Olho o relógio. Faltam 10 minutos para abrir o projeto de bazar, já agradecendo que a indústria fumástica existe.

Quem nunca enfiou a mão no cinzeiro por uma bituca?

Vício maldito, quem inventou isto não era humano.

Santa bituca!

 

Daniele de Cássia Rotundo