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18/07/2019
Os Invisíveis

Desde criança (e faz muito tempo!), eu ouvia das pessoas mais velhas, principalmente as encarregadas de nossa educação, um rifão amedrontador às cabeças infantis: ‘’cuidado, o homem do saco pode pegar você por malcriações, se não for bem na escola, se sair sozinha, se não comer".

E assim, o boato era um verdadeiro meio de coação moral e física para qualquer pequeno que pretendesse sair dos eixos.

Essa figura de contos de terror, que poderia facilmente competir com as criaturas malévolas escondidas no mundo das trevas da imaginação, era (é) personificado nos mendigos nas ruas, e das ruas.

Literalmente tentávamos entrar embaixo das saias de nossas mães, tias, madrinhas, fosse lá quem estivesse conosco naquele momento que avistássemos um deles.

Na verdade, criada numa cidadezinha de interior, essas pobres figuras eram poucas na época, e quase todas, tinham nome e sobrenome.

Eram geralmente parentes de famílias da cidade que, por alguma razão, se desgarravam do sistema e viravam transeuntes indesejáveis, que as crianças tanto temiam.

Naqueles tempos não existiam motivos, para terem medo daqueles pobres coitados que eram ajudados por todos.

Nos acostumamos a ver essas criaturas infelizes, achando até normal e parte da sociedade, e desta forma, a humanidade caminhou com a sombra de si mesmo representada por estes marginalizados.

Mas, hoje os tempos são outros e eles estão em todos os lugares por onde passamos. O lamentável é que agora, eles são invisíveis, para quase todos nós.

Passamos por eles desviando o olhar e tentando distrair nossos filhos, netos, sobrinhos para que não os percebam também. Se possível, mudamos até o caminho, não os enxergamos como seres humanos, porque hoje temos enraizado em nós o ‘’medo’’.

E com o medo: o preconceito, a intolerância, a ignorância.

Que grande decepção somos para nosso mundo! Entregamos estes seres ao submundo sem dó, nem piedade, como se fossem uma praga social que deve ser expurgada na melhor das hipóteses.

E fazemos isto de diferentes maneiras : justificando seus fracassos, julgando suas vidas, negando sua legitimidade de existir no mundo. Ou como mágica, batemos o martelo de juízes e sentenciamos com prisão perpétua no universo invisível.

Um dias desses, um fato me fez parar e refletir sobre esse assunto dos moradores de rua, mendigos, “escória social", e assim seguem os inúmeros nomes dados a eles.

Moro num prédio que se localiza numa rua muita movimentada em minha cidade, e meu apartamento fica de frente para a mesma.

Já fim de tarde escutei gritos com pedidos de socorro, e reconheci a voz de uma vizinha.

Sem pensar duas vezes, saí correndo, desci pelas escadas mesmo, pois o elevador demoraria, na ânsia de acudir a moça, embora não soubesse o que acontecia.

Quando finalmente cheguei na calçada, ela estava aos prantos, e entre soluços e lágrimas repetia angustiada que estavam querendo matar “nosso” morador de rua.

Entendi logo a situação.

Naquele momento um motoqueiro que trafegava parou e agarrou a barra de ferro de um outro mendigo que tentava acertar a cabeça de "nosso”mendigo, que lutava para salvar sua vida e ainda a de seu cachorrinho de estimação.

Quando pensamos em entrar naquela luta física, um carro da policia parou rapidamente e os policiais interagiram para acabar com a desordem (sabiamente algum vizinho pediu por ajuda policial, não fosse assim, o final desta história seria muito diferente).

Chocada, rezava para que acabasse aquela cena, enquanto acalmava minha vizinha e agradecia ao motoqueiro. Seu cachorrinho foi carregado e cuidado por algumas pessoas.

O policial sugeriu que ele saísse do “pedaço", e eu queria entender por que, uma vez que ele não fazia mal a ninguém, vivia ali há meses , era pacífico, respeitava a vizinhança e não se envolvia com ninguém.

A resposta foi categórica: "não se envolva nisto, senhora".

Em meio a esta confusão percebi que de fato, tínhamos um “mendigo de estimação”: nos acostumamos com sua presença, um rapaz jovem, de olhos claros, até bonito, apesar do estado precário que vive.

Ele raramente pede alguma coisa e eu cheguei a oferecer ajuda para que ele cuidasse de seu cachorrinho, dando ração. Tenho animais e sei o que ele significam na vida de uma pessoa, e no caso dele, ainda mais.

Algo impressionou-me em particular naquele espetáculo dramático : a rua estava cheia de gente, um aglomerado formou-se ao nosso redor, havia muitos homens e nenhum moveu mais que os olhos, sem a mínima intenção de ajudar o pobre rapaz.

Apenas nós, duas mulheres estávamos dispostas a ajudar?

Sério?

Tem também o Paulo! O Paulo é um homossexual morador de rua, com sérios problemas de drogas que acolhemos também pelos arredores de nosso bairro.

Quando lúcido ele conversa, cumprimenta e esta sempre disposto a um sorriso; quando imergido no submundo das drogas, fica quieto em seu canto.

Há meses passados o Paulo desapareceu na mesma época que soubemos, até por meios de comunicação da cidade, que um morador foi morto perto de onde Paulo costumava passar seus dias. Pensamos se tratar do Paulo mas recentemente ele apareceu, causando um grande susto e surpresa, e contou que esteve internado.

Alguns mendigos da redondeza inclusive fazem “obras de arte”e trocam por comida, roupa, materiais pessoais.

Por dias pensei sobre tudo isto.

Eles estão em toda parte, caminham entre nós, mas são invisíveis para a grande maioria das pessoas. Eles, estes não menos humanos que nós. Eles, os vestígios de um crime imperfeito.

Comecei indagar pessoas envolvidas com autoridades de minha cidade e tive a desgostosa surpresa de tomar conhecimento, que existe uma máquina de ejetar cidadãos de municípios vizinhos em condições precárias.

Sob a promessa de uma vida melhor, com banhos gratuitos, paisagem agradável, oferecem ônibus e os deixam na entrada da cidade.

O banheiro ? O banho? São nos chuveiros das praias, colocados para que as pessoas tirem o excesso de areia do corpo.

E assim acontece: tomam banho, lavam roupas, estendem-as no jardim e transformam nossa linda cidade, num albergue aberto.

Pasmem!

O que fazer?

Para as autoridades locais, não existe resolução , afinal as ruas são públicas, a praia é pública e é claro que essa “obra de caridade” até para repatria-los seria custoso e não sairia do mundo das ideias.

O que aconteceu com "nosso mendigo de estimação "?

Dia desses, voltando de minha habitual caminhada na praia, encontrei-o.

Parei para conversar com ele, que estava sentado no chão com seu inseparável fiel escudeiro, o cãozinho.

Perguntei porque ele não tinha voltado para lá e soube da execrável vida nas ruas para esses seres tão esquecidos.

Ele me explicou que cada rua da cidade, tem um dono, e os demais que ali querem ficar, têm que pagar um pedágio diário.

No época da briga, ele não tinha dinheiro para saldar sua divida do dia, e sua vida seria a moeda de troca pelo direito de usar a rua. No caso, de não usar mais a rua!

Disse também que não arriscaria voltar porque caso precisasse fugir dos "cobradores", não teria condições de correr, pois seu cachorrinho não o acompanharia. E assim, a saída para este impasse seria matar o tal dono da rua, o que ele jamais faria porque assassino ele não é.

Nunca mais poderei olhar para estes irmãos da terra sem lembrar destas palavras.

Em uma viagem para Las Vegas, EUA há alguns anos atrás, naquele mundo sem lei, onde o que importa é o dinheiro e a diversão, vi vários moradores de rua (homeless) perambulando pela cidade, visivelmente perdidos e confusos.

Lembrando destas cenas em lugar tão distante da minha cidade santista, imaginei quantos jovens, idosos, solteiros, casados poderiam perder-se nas drogas ou jogos em uma festa destas tão famosas, como as que tem em Las Vegas.

Um deslize numa noite de farra, álcool, drogas, algum problema pessoal e bingo: mendigos por uma eternidade, sem eira nem beira no caminho quase sem volta desta vida ordinária.

Um dia, uma noite, uma briga e a vida largada na sarjeta. E este poderia ser um filho, um ex marido, um primo, um amigo, alguém que um dia fez parte de nossa historia.

Sim! Isto pode acontecer com qualquer um. Quantas mães devem chorar pelo filho que não voltou de uma festa, pelo marido que desapareceu, pelo amigo que quiçá já morreu?

E este ai, deitado no chão da rua, pedindo esmolas para drogar-se, comer, ou pagar o aluguel do pedaço de concreto, foi um dia, um alguém tão respeitado quanto qualquer outro diante da lei na vida nesta Terra.

Culpa de quem?

Problema de quem?

Responsabilidade de quem?

Não sei por que eles vivem assim...

Não cabe a mim julgar.

Mas seja qual for a classe social, seja rico, seja pobre, seja morador de rua, os serem humanos ainda têm muito o que aprender.

E qualquer um pode ajudar. Com uma palavra, um sorriso, uma demonstração de afeto que traga de volta o individuo perdido nestes errastes.

A deplorável vida deles não é apenas reflexo de desajuste social, econômico, politico. É também revérbero da rejeição de cada um que fecha os olhos e atravessa a rua, buscando o cômodo espaço sem poluição humana.

Terra, planeta de expiação e aprendizado espiritual, onde poucos fazem o seu muito para seu semelhante, mas essa ajuda é pouca diante dos muitos que são invisíveis.

Os animais, chamados de irracionais, têm muito para nos ensinar sobre o amor incondicional.

Parem esse mundo, eu quero descer!!!!

 

Selma Esteticista.