08/05/2012
Lamparina à querosene

Se recordar é viver novamente, então devo ter o dobro da minha idade, pois vivo recordando! Além de exercitar minha mente, as recordações nutrem minha alma com coisas simples vividas em tempos idos.
Dias atrás, conversando com um amigo, ouvi: - Não sei como conseguíamos viver sem celular, internet, ar condicionado, carros, aviões, trens velozes etc.
Nossa prosa foi tomando outro rumo e falamos sobre as coisas que fizeram parte de nossas vidas por muitas décadas, assim como as lamparinas. E assim fomos esticando a conversa para dar tempo de tomar mais uma cerveja. Sem pestanejar, eu lhe respondi: - só vivíamos sem estas coisas modernas porque não tínhamos referencias. Se nos privarem do acesso a tudo isso, o mundo entrará em colapso, porque agora conhecemos o valor dessas tecnologias e o quanto elas facilitam nossas vidas. Com elas o mundo ficou pequeno.
Em nosso sítio, apesar de já termos luz elétrica, vivíamos tendo problemas de queda de energia na rede, principalmente nos dias e noites de temporal. Nessas horas entravam em cena nossas três lamparinas que ficavam guardadas numa prateleira em nossa dispensa – local destinado a guardar mantimentos.
Ao lado delas meu pai sempre deixava uma caixa de fósforos para acendê-las durante os apagões freqüentes. Nesses momentos, depois de fortes trovões, relâmpagos e até raios nas proximidades de nossa casa, sentíamos um medo aterrorizante, e o “paieeê tô com meeeedo”, vinha de todos os cantos de nossa pequena casa.  Tanto eu como meus irmãos menores, tínhamos pavor do escuro e de chuvas fortes, afinal havíamos perdido um tio, morto por um raio, na colônia onde morávamos.
Diante da escuridão, a santa lamparina nos acudia e iluminava nosso lar nos passando autoconfiança, principalmente depois de nos aninharmos entre nossos pais, em um macio e barulhento colchão de palha. Aí, até os salpicos da chuva fria caindo do telhado, se tornavam agradáveis, pois nossa casa não era forrada e havia apenas paredes dividindo os cômodos.
Alguns de meus primos nasceram pelas mãos de uma parteira - chamada Maria Alemoa e sob a luz de uma lamparina. Depois de nosso rádio Semp de oito faixas, do fogão de lenha e do pinico de ágata de minha avó, era a lamparina o utensílio mais útil de nosso pequeno, mas aconchegante lar.
Apeguei-me tanto a elas que aprendi a gostar do cheiro de querosene queimado e da fuligem que formava em nossas paredes brancas cobertas com apenas uma demão de cal. Naquele tempo os remédios eram raros, e era comum nossa mãe levantar o pavio, embebido no querosene, para nos passar na nunca e às vezes no peito, para curar gripe, nariz entupido e até bronquite. Não sei se curava, mas nossa fé era tão grande que um alívio imediato nos trazia.
Lamparina a querosene que iluminou silenciosamente por muitos séculos as
lições das cartilhas escolares de gênios, intelectuais, pobres e ricos de todo mundo. Lamparina - você que iluminou angústias, alegrias e tristezas de várias gerações. Lamparina que iluminou nascimentos e mortes receba minha homenagem porque além de ter sido minha companheira nas infindáveis noites de insônia e das delirantes dores de dentes sofridas na roça, você iluminou as letras do alfabeto nos primórdios de meu aprendizado escolar! Você sim venceu o tempo, bem como toda tecnologia criada nas últimas décadas! Que sua chama abençoada não se apague nunca!
E VIVA A LAMPARINA A QUEROSENE!
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Osvaldo Piccinin

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