02/07/2021
Nem a morte nos separa

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Era manhã. Entretanto, a calmaria matutina que ora reinava em minha rotina desaparecera. Fora substituída por muita adrenalina - o suficiente para me manter acordado sem o efeito da cafeína pelo restante do dia, que, por ventura, se tornaria noite, até madrugada, e dia novamente. Nada além de mais um dia por aqui. Como todo ano, naquele período entre 24 de dezembro e 1º de janeiro, a percepção de tempo é diferente. Acho que quando a gente é criança, esse período semanal tem a duração de uns três meses e, conforme a vida vai e o amargor da vida adulta vem, os meses voltam a se tornar dias, um após o outro.

Assim como o aval para exercer a profissão médica, o solstício de verão era também recém-chegado: o polo sul da Terra estava inclinado em direção ao Sol mais do que em qualquer outra época do ano. Tal qual esta aproximação dos corpos celestes, todo o meu foco e atenção se aproximavam daquela caneta e daquele pedaço de papel, que, como um pergaminho mágico, ao serem pronunciadas as palavras-chave de seu conteúdo, num passe fazia-se aparecer um ser humano - carregado de queixas.

- Otávio Soares!

Bum! A mágica deu certo. Surge não apenas um, mas dois seres humanos, e em pouquíssimos segundos!

Calça social marrom, sandálias de couro, camisa de linho branca que harmonizam num alvo de cabelos ralos, mas sobrancelhas espessas. Era ele, Seu Otávio, que, naquele momento, nada me revelava, mas, com seus quase 80 anos e sua postura ereta, caminhar ortodoxo e dispensando a ajuda vinda do filho que o acompanhava, não precisava verbalizar para me dizer muita coisa.

- Bom dia, Seu Otávio!

Sou respondido prontamente com uma voz rouca, porém, serena. Talvez de quem já fosse maduro o suficiente para compreender a necessidade de extinguir aquele amargor da vida adulta que faz o Natal passar pouco percebido.

- Como posso ajudar o senhor?

- Sabe o que é, doutor? Eu ando sentindo muita dor nas costas, já faz uns meses, mas ontem piorou muito.

- Consegue me dizer onde? Mais pra cima ou mais pra baixo?

E, inconscientemente, faço uma mímica apontando em mim mesmo as diferentes regiões dorsais até chegar na lombar.

- É bem aqui embaixo, doutor!

- Certo...me fala uma coisa, o senhor passa muito tempo sentado, Seu Otávio?

Eis que aparece um novo interlocutor, seu filho Paulo, que carregava uma pasta repleta de exames passados de seu progenitor, que não serviriam para nada. Mas, assim como nossa vó nos dizia para levarmos um casaco para caso o dia esfriasse, aqueles documentos geravam também um sentimento de segurança.

- Sim, ele passa o dia inteiro sentado...

Até aí, pouco surpreendente, um comportamento bem comum para idosos. A surpresa viria em seguida.

- ...escrevendo!

Espantosamente e fazendo questão de demonstrar admiração, mesmo coberto pela máscara, exclamo:

- Escrevendo?! O senhor escreve?! O que?!

- Doutor, ele passa o dia inteirinho escrevendo naquele computador, não para por nada! Eu falo "pai, vai dar uma volta, para um pouco", mas não adianta! Ele quer terminar logo o livro...

Interrompo e passo novamente o olhar ao protagonista da consulta.

- O senhor está escrevendo um livro?!

- Estou!

Responde orgulhoso.

- Fiquei viúvo depois de quase 60 anos de casamento...

Pausa para fôlego. Olhar ao nada. Dizendo muito. Naquele momento os holofotes tinham só um alvo. Um suspiro.

-...Eu queria ter ido antes dela, mas não deu. E desde que ela se foi, fiquei numa depressão tremenda, sabe? Não queria nem levantar da cama, então resolvi escrever um livro sobre a história do nosso casamento e as coisas que a gente viveu, assim ela fica sempre viva...

Aquela voz espessa e arranhada contrastava com tamanha lucidez.

- Mas que história incrível, Seu Otávio! Quando estiver pronto, com certeza, vou querer ler! O senhor se tornou uma inspiração, quem sabe agora não me dá vontade de escrever também, hein?

- Ah, mas você é muito jovem! Tem muito pra viver ainda...

Antes que eu pudesse esboçar qualquer réplica, como um chacoalhão, sou posto novamente à realidade.

-...Deve ser por isso que dói, né, doutor?

Explico cuidadosamente as causas, tratamentos medicamentosos e comportamentais para a lombalgia. O paciente e seu acompanhante, com os semblantes satisfeitos, se retiram.

É, Seu Otávio, dizem por aí que quem passou pela vida de um escritor nunca morre. Acho que você me provou isso. Nem mesmo a morte os separa.

Respiro fundo. Ouço muitas vozes. A casa está cheia. Não demoro a me levantar. Caneta na mão. Mais um pergaminho, mais uma mágica, mais um ser humano com suas queixas. O que vem por aí? Não sei. Mas tenho a convicção que Seu Otávio fez mais por mim do que eu por ele: meus Natais nunca mais vão ser os mesmos.

-

Lucas Taffarello

*Esta é uma história verídica, mas os nomes reais foram trocados.


Lucas Taffarello

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