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20/05/82
O caso Raul Seixas Caieiras

Impostores de Si mesmos
Mauro Chaves

O tragicômico episódio em que se envolveu o compositor e cantor Raul Seixas, na madrugada de domingo último.

Nos leva a extrapolar uma reflexão sobre os sinais dos tempos nestes tristes trópicos. Antes, porém, recapitulemos a insólita notícia, para os que a perderam: o referido cantor quase foi linchado na Cidade de Caieiras - município da Grande São Paulo - quando cerca de trezentas pessoas que assistiam a seu show não acreditaram que fosse ele mesmo, mas sim um impostor, que se estava apresentando na Feira do Folclore local. Vaiado a cada música que interpretava, Raul Seixas, desde o início, não foi reconhecido pelo público da cidade, até que, sem condições de continuar o espetáculo, e ameaçado de linchamento, foi para o camarim. Pouco depois, chegaram alguns policiais e o levaram para a delegacia, sob a acusação de ser impostor (obviamente, ele estava sem documentos). Isso porque, sentindo-se logrados com a apresentação do que juravam ser outra pessoa, vários espectadores foram até a casa do delegado, exigindo que este autuasse o cantor. O delegado atendeu e, na delegacia, tratou-o como se fosse um vagabundo, afirmando que conhecia o "verdadeiro" Raul Seixas, para em seguida obrigá-lo a cantar "para provar sua identidade". Além disso nesse mesmo "teste de identidade", o delegado perguntou se Seixas sabia onde tinha nascido Chacrinha. Como não soube responder, recebeu tremendas bofetadas, acabando trancafiado por duas horas no xadrez da dita delegacia.

Arbitrariedades e imbecilidades policiais à parte, pois que não é disto que estamos tratando, eis agora a simbólica extrapolação: A vox populi da Sociedade Civil brasileira está a cobrar no presente momento, a "verdadeira" identidade de quem quer que ocupe o espaço público. Na camuflagem geral dos posicionamentos, dentro da corrida eleitoral que cada vez mais embaralha os personagens que atuam no palco político-partidário brasileiro, vai o povo também correndo, em sua estonteante, angustiosa e frustada tentativa de decifração do "quem é quem", do "quem é o que". Por outro lado, sentindo-se, esse povo, sobremaneira logrado pelas respectivas performances dos que se arvoraram, à sua revelia, em "líderes" ou administradores da coisa pública, cada vez se lhe torna mais difícil o reconhecimento daqueles que, se impostores são, não possam, todavia, de impostores de si mesmos.

Tomemos o exemplo da leva de governadores biônicos que acaba de se desincompatibilizar, para disputar eleições.

Afora o aspecto positivo que significa essa garantia de que, efetivamente, haverá eleições - pois o sistema aí chega ao point of no return do comprometimento com o risco das urnas -, todo o espetáculo, toda a rocambolesca festividade inaugurativa dos "desincompatibilizandos", não deixa de ser um grande embuste biônico, mas em relação ao qual o eleitorado não deveria nutrir nenhum sentimento de surpresa. Ou seja: Assim como a fama de Raul Seixas se iniciou, em certo festival, com uma enigmática, incompreensível e dificilmente digerível composição - a "Cabeça" - (e aqui, bem entendido, não estamos emitindo nenhum juízo de valor, em relação à quatidade da obra desse compositor), continuou ele, coerentemente, na mesma linha. Ocorre que o grande público tinha mais informações sobre um nome do que sobre uma obra, talvez em virtude justamente da fama polêmica gerada por sua personalidade artística. Então, quando o público vai conferir aquilo de que muito se fala "mas que pouquíssimo ouviu, ou entendeu, diretamente), sente a enorme decepção, e começa a duvidar se, de fato, "aquele é ele mesmo".

Mesmo é a confusão popular em relação aos que, coerentemente, terminaram suas gestões como as iniciaram: inaugurando obras decididas, planejadas, alocadas ou iniciadas em gestões anteriores - o que lhes deveria conferir, quando fosse o caso, o mérito pela continuidade -, mas assumindo, demagógica e mentirosamente, a inteira "paternidade" das mesmas (pois as placas logotipadas das atuais gestões jamais fazem referência alguma às que lhes antecederam, passando ao público eleitoral essa falsa informação de exclusividade); ou inaugurando obras inacabadas, "faturando-as" por antecipação, com enorme publicidade, etc., etc. Ora, a ninguém deveria surpreender tais atitudes, pois subjacente ao próprio conceito da "bionicidade" - tal como se consagrou, entre nós, o termo que bem designa um dos mais típicos fenômenos da exceção - está o da usurpação, que, se é da vontade política popular , bem que também pode ser da "autoria" da obra "alheia".

Não se pense, entretanto, que apenas dentro dos quadros situacionistas se manifesta esse tipo de embuste. Ao contrário, a camuflagem conceitual dos partidos oposicionistas, com suas definições ad hoc, visando à descoberta açodada de "bandeiras" diferenciadoras, tendo em vista suplantar a concorrência - como, por exemplo, através das retóricas "nacionalizantes" e/ou "socializantes", misturadas, confusamente, à posição de defesa dos princípios liberais que informam as democracias representativas -, cada vez mais aumenta a confusão de cabeça, a nível político-eleitoral (como já o fez Raul Seixas, a nível estético-musical). E intensificam-se assim, aquelas terríveis dúvidas, prontas a invadir o cerebelo do coitado que pretenda votas conscientemente: Quem é quem? Quem é o que? Será ele mesmo?

Que o cantor Raul Seixas, que nada tem a ver com nosso peixe político - afora lamentarmos profundamente a estúpida arbitrariedade de que foi vítima - nos, perdoe a extrapolação. Mas não resistimos em dizer que, muito provavelmente, haverá um grande "linchamento" de todos esses "impostores de si mesmo", nas urnas de novembro.


O Estado de São Paulo (republicado pela Folha Regi