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14/08/2014
A gaveta da cômoda

Minha Madrinha tinha lá suas formas de poupar e em tempos difíceis  sua cartilha de economia precisava ser seguida rigorosamente. Como há 50 anos não havia agências bancárias em Caieiras, ela guardava o dinheiro  em casa mesmo, quando sobrava e  numa gaveta da  cômoda forrada com papel de presente estampado. Era lá o nosso cofre. Mensalmente alguma quantia era depositada debaixo daquele forro de papel, bem ao fundo, embrulhada num lenço ou num pedaço qualquer de tecido. Pelo que ela  dizia, sempre fora assim. Quando jovem e já  casada, o marido lhe entregava o salário recebido da Melhoramentos, confiando  plenamente em sua administração doméstica. Ela pagava então, as contas do mês... O Armazém, o Padeiro, a Quitanda e outros. O que restava?  Fundo da gaveta!!!
Com as  suas costuras e com  as horas extras do meu Padrinho é que aquela gaveta da cômoda se abastecia. Nela, o dinheiro permanecia   intocável   até o momento exato de ser utilizado. O momento? Sempre no final do ano... Para as festas, roupas novas, presentes e  coisas  para a casa.
Mais tarde, com as filhas adultas trabalhando, o hábito ainda se manteve e com a viuvez,  em 1965, o costume perseverou. Todas as economias provenientes de suas costuras, crochê, faxinas e lavagens de roupa iam religiosamente para o fundo daquela “gaveta bancária”. Algumas  vezes, durante a limpeza e arrumação do móvel até presenciei sua satisfação,  ao encontrar uma nota  perdida que   havia  se enroscado numa outra ponta do papel. Nunca  nos atrevemos a  mexer naquele “santuário”. Sem  chaves  e apenas com sua proibição verbal, nem chegávamos perto da sagrada gaveta.
Só que naquela época não se falava muito em juros ou correção e ela guardava apenas  para as eventualidades. Eu mesma, seguindo seu exemplo, cheguei a depositar  minhas moedas num cofre “porquinho” de plástico. Mas, as minhas emergências eram tantas que eu acabava colocando a ponta da faca na  abertura para retirar algum trocado, sem  que ela percebesse a façanha.
Quando enfim, as agências bancárias começaram a se instalar em Caieiras, sua primeira determinação foi para que eu abrisse minha própria conta. Guardar na gaveta da cômoda já não era o  mais recomendado. Como agradeço sua imposição!
Hoje, ouvindo pelo rádio  informações sobre investimentos financeiros  pensei muito nela, que tanto me ensinou na vida. O que  diria ao  sentir  a neurose, o desespero e a intranquilidade de quem dorme e acorda pensando em  rentabilidade? Certamente ela se apiedaria de todos. Afinal nada disso teve  muita importância  em sua vida sempre voltada para um investimento bem diferente: O das atitudes grandiosas e transcendentais.
Refletindo  seriamente  sobre  o hábito peculiar desta simples e sábia mulher concluo sobre tudo  com uma analogia maravilhosa e até poética. Se por um lado ela poupava, na pequena gaveta da cômoda, valores para suas  emergências, em contra partida  esbanjava alegria, risos, bom humor, amizade, amor ao próximo, generosidade e muito, muito   entusiasmo  por viver humildemente sem extravagâncias desnecessárias . Se jamais pensou  em lucrar, aumentar seu capital ou enriquecer e se  bastou-lhe aquilo, da gaveta da cômoda, rendo-me  ao padrão de vida  por ela adotado porque, sua  felicidade sempre  esteve acima destas preocupações tão materialistas e ilusórias. Certamente, quando se atinge  este grau máximo de sabedoria, as perdas  e desvalorizações monetárias pouco importam pois,  o ganho maior estará sempre na plenitude de uma vida rica de bons sentimentos e de patrimônio imensurável. Como foi a dela.

FATIMA CHIATI