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Inédito: um Economista que não reclama da carga tributária brasileira

Confira as reflexões do Prof. Dr. André Franco Montoro Filho, apresentadas em palestra na inauguração do novo espaço de lazer da Casa dos Economistas, em São Paulo

"Gostaria de, em primeiro lugar, agradecer ao convite do Prof. Rizzieri e dizer que para mim é uma satisfação poder vir a esta inauguração para conversar com os colegas Economistas sobre o que mais gostamos, Economia. Vou procurar apresentar aqui mais algumas reflexões do que especificamente fazer análises de conjuntura, cujas perspectivas poderemos nos debruçar nos debates que virão em seguida. A primeira reflexão é sobre algo que chamo da “visão dicotômica” que é muito comum e em geral se tem a respeito do Brasil. Quando se pensa numa dimensão, quando sintonizamos num determinado canal em que se vê as potencialidades do Brasil, as riquezas e as belezas do país ele se apresenta como maravilhoso: “Criança, não verás País como este..., “As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá...”, como dizia Gonçalves Dias. O Hino Nacional fala de um “gigante pela própria natureza”, visão extremamente positiva, ufanista, sobre um Brasil de grandes potencialidades. De outro lado, quando as ondas sintonizam um outro canal que mostra as imagens da realidade, a situação brasileira é apresentada permanentemente como em crise dramática, “ a pior crise que já houve”, sempre estamos na pior situação possível. Os maiores problemas do mundo sempre são crises. Entrei na Faculdade de Economia em 1962; não houve um ano em que não houvesse "crise": sintonizou na "rádio" da realidade é sempre crise, crise, e mais crise, permanentemente, e raros os momentos em que falando com jornalistas ou economistas, a situação da educação não era “calamitosa”, com crianças passando oito anos na escola “sem aprender a ler e escrever”, o nosso sistema de saúde “horroroso, um caso de polícia, mau atendimento, falta de verba, fila...”; segurança então, nem é bom falar...Essa é a realidade que se vê, que se sente do outro lado. Se o potencial do Brasil é maravilhoso, se é aquele “gigante”, maravilha sonhada pelos poetas, e a realidade é uma desgraça, a culpa é das nossas elites, especificamente de nossas elites governantes, e o culpado de tudo é sempre o Governo, é a conclusão apressada que se faz a partir das premissas colocadas. Essa visão dicotômica é, na minha opinião, totalmente equivocada. Na verdade, o Brasil nem é essa maravilha que apresentam os poetas e o nosso hino, e por outro lado a realidade não me parece ser tão crítica assim. O Brasil, no mundo, é um país de classe média (segundo a profª Zockun, de classe média baixa, agora...). Se compararmos o Brasil com os países europeus, com os Estados Unidos, é claro que vai se ver uma divergência muito grande. Mas, se comparado com muitos outros países se verá que não estamos tão mal. Em geral, se pegarmos todas as classificações do ponto de vista social e econômico, IDH, etc, o Brasil fica há algum tempo perto da 60ª posição no mundo, o que perante uns 200 países existentes é uma posição classe média. Essa avaliação coincide inclusive com a classificação que tivemos nos Jogos Olímpicos, pelo número de medalhas que conseguimos comparados por estudos econométricos com população e renda, que confirmam a tese. O perigo dessa visão dicotômica é que ela é um convite certo para a frustração, porque se espera por coisas com aquela visão da "maravilha", e fica-se com a expectativa, quando se analisa governos, que basta um governo honesto e que tenha "vontade política" que se resolvem os problemas. A derivação dessa visão dicotômica desloca a esperança para a simplificação, onde bastaria colocar uma elite política honesta e que trabalhasse com "vontade política" que tudo se resolveria... E, assim, tivemos e estamos tendo nestes últimos 30 anos no poder, militares e depois democracia, e dentro dela o acesso ao poder de todas as correntes políticas com representatividade na sociedade, em todos os níveis de Governo, federal, estadual e municipal, onde todas as facções e pensamentos políticos no Brasil já assumiram alguma parte de Poder, e não mudaram nada de substancialmente relevante. O País está frustrado, e a crítica que fica é “não fez porque não quis, faltou vontade política”, etc. Esta é a primeira reflexão que eu gostaria de deixar para o nosso pensar: a visão dicotômica que temos do País. A segunda reflexão que quero trazer, já conhecida, é sobre a dívida pública. O PIB brasileiro é hoje de cerca de 1,5 trilhão de Reais, e a dívida do setor público está na faixa dos 900 bilhões. Fazendo as diversas correções, vamos verificar que em 1995 o PIB era de 1,3 trilhão de Reais, com dados corrigidos por 2003, e a dívida estava em 520 bilhões, incluídos aí todos os ‘esqueletos’ que apareceram. Assim de 1995 a 2003, a dívida sobre o PIB cresceu de 40 para 60%. O crescimento do PIB foi de 2%aa, e o da dívida 8%aa. Pelo exercício que fiz, calculo que para a dívida ficar novamente em torno de 40%, ou seja, 600 bilhões e não os atuais 900, teria sido necessário o Governo pagar 300 bilhões a mais, ou seja 20% do PIB nestes 8 anos, ou 2,5% do PIB por ano: é uma conta bastante grande. Durante o período FHC não houve déficit primário, nos primeiros quatro anos houve praticamente equilíbrio e de 99 para cá houve até superávit primário. FHC não foi um grande gastador, a lembrar os salários que não aumentaram, os investimentos reclamados em energia chegando até ao ‘apagão’ e à crise energética, e mesmo assim a dívida teve esse crescimento de 50%. E agora, para manter os 60%, supondo juros só de 10% e supondo que o Brasil cresça 3%, vamos precisar de um superávit de pelo menos 3,5%. É uma dívida que pesa muito, cujos efeitos negativos muitas vezes não são levados na devida consideração, nem o quanto representam em termos de restrições ao crescimento. Esse cálculo simples, mas terrível, mostra como é importante tratar a questão da dívida e dos juros para que se tenha uma perspectiva real de melhora da nossa Economia e de crescimento sustentado. Se não for dada alguma solução para isso vai ser difícil caminhar para um futuro melhor. A terceira reflexão que gostaria de fazer é sobre a questão do Governo, e a carga tributária, que é muito criticada em vários momentos, que seria exagerada, e há até uma rádio paulistana que diz que este é o país dos impostos. Isso não é verdade... Diversos países do mundo têm cargas tributárias equivalentes à do Brasil; diversos países do mundo cresceram, e cresceram bastante, com carga superior à nossa , com o exemplo maior na Alemanha dos anos 50 e 60, que teve crescimento expressivo com carga tributária próxima de 50%. Mas, o importante a se colocar é que na verdade o que ocorre no Brasil é que a carga tributária que é apresentada , 35, 36, 37% – sempre querem aumentá-la – não resta dúvida que é uma carga alta em relação a países similares, mas não é uma carga absurda assim como se fala. É importante ver com atenção um aspecto que não é muito comentado: a carga tributária líquida no Brasil não é de 35%, é de 20%. A diferença são os benefícios concedidos e transferidos aos de menor renda, basicamente os previdenciários, aproximadamente 15% do PIB. Ou seja, o que fica para os governos federal, estadual e municipal, para prover bens e serviços, educação, segurança, saúde, cultura, estradas, etc, soma 20%. O restante é só uma redistribuição, não são recursos tirados do setor privado, eles ficam nesse setor, só que mudam de mãos, de algumas pessoas que pagam impostos e tributos para aquelas que recebem essas contribuições. Pode-se dizer que isso é mau, que não é justo, mas o fato é que temos aí talvez o maior programa de redistribuição de renda do mundo, que claramente apresenta alguns resultados . A recente pesquisa do SEADE aqui de São Paulo, mostrou como melhorou a posição do idoso nas famílias de baixa renda. Ele tem um salário mínimo, em geral, uma porcariazinha, mas tem! É garantido, e ele passa a ser valorizado pela família, passa a conviver com ela, o que é , sob o ponto de vista social, muito bom. E até sob o ponto de vista do governo isso é positivo, pois se esses idosos não estivessem integrados na família certamente haveria de se criar asilos ou outras soluções para ampará-los, acarretando gastos da mesma forma. Esses 20% que ficam para os governos não significam um nível muito elevado, especialmente se pensando em Brasil, um país de extremas dificuldades e necessidades, lembrando que num ambiente democrático essas demandas aumentam. Se analisarmos as contas do período autoritário com as de agora, verifica-se claramente que houve um aumento extraordinário de gastos na área social. Por outro lado, a parcela de investimentos em infraestrutura diminuiu, ao ponto de hoje esse valor estar situado em 12 bilhões, autorizados, segundo ouvi do Senador Tasso Jereissati em notícia pelo rádio, dos quais apenas 17% foram aplicados até agora, ou seja, praticamente nada, porque tudo foi direcionado para as políticas sociais de redistribuição. Isso merece também uma reflexão , e estou falando entre social e infraestrutura, mas em geral se fala em custeio e investimento. E, para os economistas, investimento é uma coisa mística; “é preciso investir”, e há uma crítica porque o governo não está investindo. Na verdade é preciso entender o que é investimento, em termos de governo. Investimento é construção de equipamentos. Ora, se o Governo está em grande parte indo para o social (educação, por exemplo, é só custeio) não tem investimento, pois construir uma escola e comprar computadores significa um custo ridículo em termos do que se gasta com salários de professores, lembrando que cursos de aperfeiçoamento de professores e reformas, como outro exemplo, também são custeio. Na USP,UNICAMP e UNESP a folha de pagamento gira em torno de 90% das despesas totais, e é isso no mundo todo, educação é o professor, e o resto é gasto pequeno. Em saúde também, o gasto básico é com pessoal e medicamentos; o custo de construir um hospital equivale a um ano ou dois, no máximo, do seu custeio futuro. Assim, se o Governo está centrando no social, significa necessariamente que o volume de investimentos na infra estrutura será menor, mas isso não quer dizer que ele não esteja contribuindo para o desenvolvimento. Todos sabemos que o crescimento, pelos modelos clássicos, tem por fatores fundamentais quantidade de trabalho, quantidade de capital, mais o progresso tecnológico, mais a qualidade do trabalho, basicamente, que vem pela educação, pela cultura, pela pesquisa. Então, em termos de crescimento, mesmo que o Governo não esteja fazendo os seus investimentos, pode estar ainda assim dando uma excepcional contribuição. E para terminar, dentro ainda dessa reflexão, se fala que o Governo arrecada muito e não redistribui nada, que as pessoas não recebem os serviços, e ainda que ele gasta demais. Isso também não é verdade. O Brasil tem cerca de 50 milhões de crianças em idade escolar, das quais 85 ou 90% estão em escolas públicas, ou seja, temos 43 milhões de crianças em escolas de governos, o que é realmente importante, fora os gastos com universidades. Com a saúde ocorre o mesmo, onde as pessoas reclamam que para se ter qualquer atendimento é preciso pagar um plano de saúde particular. No entanto isso pode ser para 5% dos brasileiros, pois 95% da população é atendida pela medicina pública (SIC). Será que tudo isso funciona, ou não? E aí faço minha reflexão final. Se pegarmos os dados sociais desde 1985, verifica-se que todos tiveram crescimentos positivos e continuados até aqui: a expectativa de vida aumentou, a mortalidade infantil caiu, aumentou o número de escolas, de residências com água e esgoto tratados. Qualquer indicador social mostra progressos. De outra parte, a renda , em termos reais, caiu. Como explicar isso? Acho que só pode ser explicado com o governo crescendo e aplicando mais no social. Como se avalia o gasto público? O que se quer obter? Como avaliar a construção de uma rede de esgotos? Só se vai saber mais adiante, quando se verificar que a mortalidade infentil caiu naquele nicho, e a saúde das pessoas da região toda melhorou, ou seja, a avaliação do gasto público é em função daquilo que se conseguiu obter para melhor qualidade de vida dos cidadãos. Nessa perspectiva, a hipótese que eu tenho é que o Brasil aumentou substancialmente o gasto na área social e os indicadores sociais melhoraram, ou seja, a avaliação é extremamente positiva. Ao contrário do que se apresenta e do que se fala comumente, o Governo neste particular tem sido bastante eficiente. E fica aí a questão: com esse quadro, como é que vamos fazer para que o Brasil cresça? Essa não é a minha tarefa, e eu passo a palavra ao professor Belluzzo, que certamente terá o que sugerir sobre o assunto. Muito obrigado!”

 

André Franco Montoro Filho / O Economista