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03/03/2017
A pequena bolsa de Anabella

Anabella levantava-se todos os dias com as mil preocupações do que faria, do que devia fazer, do que não conseguiria executar mesmo que suas veias se transformassem em cópias idênticas ao DNA da “Mulher Maravilha”, versão século 21.

E sim, por muitos anos despertou com as ganas de construir seu dia um pouco menos aborrecido com a frase mestre: “ Hoje farei algo que eu goste”.

No caminho para seus afazeres aguados, escutava bem perto de seus ouvidos: “Cuidado com a bolsa! “ E um pássaro voava rasante sobre sua cabeça.

A noite chegava e o cansaço tomava propriedade e posse de seu corpo, mente e alma.

Seu banho era rápido, já que suas pernas estavam temblando e ainda urgia arrumar o básico para o dia seguinte.

A voz: “Cuidado com a bolsa! “ O pássaro.

Anabella parava alguns milésimos de segundo para pensar no que significaria estas raras palavras insistentes mas detinha esta elocução empoeirada.

Assim, o cotidiano ia tomando espaço, um espaço que não o pertencia, os meses passando, as problemáticas frenéticas surgindo, anos.

Fim de ano: “Este ano me proponho a ser melhor para mim, ser melhor para o outro”.

E? E nada! Nada porque simplesmente não mudava nada e nada mudava.

E não mudava por que?

“Cuidado com a bolsa! “

Mas que bolsa? Eu carrego uma minúscula sacola abarrotada com o que preciso porque mal posso com minhas pernas!

Exaustão. A incerteza de sua capacidade, o desânimo, o início do ceticismo de sua fortaleza começaram a fazer eco em seu cérebro já apetecido por desmemoriar-se. Será que a enfermidade mental avança tão tempramente?

A força motriz dos oceanos de águas negras desaguava direto ao breu. Uma sensação de afogar-se continuamente inundava seus sentimentos, suas vontades, a lembrança do significado, já remoto do que é viver!

A gutural vontade de cuspir seus fantasmas enchumaçados num canto qualquer de seu cérebro espremido era grande.

Anabella não renderia vassalagem sem lutar, mas as esperanças de um amanhecer descompromissado com o pesado tomavam forma de caminho sem volta em seu despertar matinal.

“Cuidado com a bolsa! “ O pássaro.

Definitivamente “sou uma fraca, tola e inútil! “

Suas pequenas sacolas gradualmente pesavam como ferro nas viagens de suas obrigações e cobranças isquêmicas.

“Não há pontos em minha vida, as vírgulas não estão definidas porque parar para respirar entre um resvalo e outro é perder tempo. Aspas para o que vou falar, nem pensar: tardaria um tempo enorme explicando o que não há ouvidos para escutar. Exclamações: “não me venha com esta, só se forem para vangloriar os arbustos mentais ressequidos que tenho que aturar entre as reuniões enfadonhas de meu labor.

Interrogações: Ah! Estas sim, mas para que falar delas se não sou capaz de perguntar nem a mim mesma o que me acalmaria minha alma (?) (Óbvio, seria um contrassenso buscar algo que já creio não poder ter!).

Bom, melhor desisto assumo meu fracasso e sigo neste marasmo mental enquanto minha maquinaria carnal cumpre com esta vidinha que escolhi em um momento de bebedeira associada a presunções heroínas de minha capacidade em ser quase deus”.

“Cuidado com a bolsa! “ O pássaro.

Anabella caiu. Tropeçou na bolsa.

Estirada no colchão frio de sua cama desarrumada, esperava piedade.

O pássaro entra em seu quarto: “Ah, querida Anabella, eu avisei tantas vezes de sua bolsa. Preciso que me entregue, por favor! “

Anabella olha a cena arrepiante e descompassada responde aos gritos: “Estou louca, saia de meu quarto, alucinação infernal, não há bolsas, não há nada aqui a não ser este resto de pessoa que seus olhos pequenos miram ”.

“Anabella não seja tola, venho de seus olhos reais, olhe para esta penosa ave e deixe-me voar para longínquos horizontes levando este pesar de tanto tempo”.

Ela finalmente parou sua torre de babel mental.

Voar? Bolsa?

“Sim, há quanto tempo guarda este passado incongruente de uma vida que já não pertence mais a seu sol matinal? Há quantos dias, meses, anos carrega este pesar como um troféu da vergonha de si mesma? Por que tem acanhados pensamentos entorpecidos, já necrosados dentro de sua bagagem?

Anabella, sou seu inconsciente.

Esta bolsa é seu passado, seu presente recheado de passado e seu futuro já carimbado por este passado de carregar seu mal-estar em viver no passado.

Esvazie-se. Me deixe voar. Liberte-se. Não me arraste mais. Estamos afundando.

Que mais além de uma vida sem vida você encontrará vagando com tamanha miserável visão de você mesma?

Pode seguir enganando-se, eludindo-se e supondo que está conseguindo.

Mas observe. Onde está, quanto martiriza esta bolsa de lixo sem serventia? Pesa muito Anabella. Solte tudo, e então encontrará como seguir seu caminho com a vontade de fazer algo diferente e fiel ao que você é hoje! “

Ela compreendeu que seu destino estava impregnado de uma história sem sentido, que ela não colocava pontos, vírgulas em nada. Compreendeu que escondia na sua bolsa esmagando-se num castigo calado.

“Leve tudo meu amigo. Eu me rendo. Não posso mais viver esta mentira contada por mim, para mim. Quero ser nova, preciso desta chance”!

O pássaro voou e Anabella, belamente adormeceu. Adeus a tudo que me aterrou. Renasço.

Daniele de Cássia Rotundo