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Delfim Netto o Economista da “Idade Média”...

“Bom dia a todos, é com muita alegria que estou aqui, pois esta é uma reunião de amigos e companheiros, e eu venho na condição de um velho economista, que se formou na “Idade Média”, no tempo em que os economistas, a gente supunha, existiam para serem lubrificantes do crescimento. Os economistas mais modernos escolheram caminhos mais difíceis, de serem areia na engrenagem do crescimento, de forma que a nossa especialidade está se transformando em encontrar não as facilidades para realizar o crescimento, mas todas as dificuldades que o impedem. Ouvimos sempre uma coleção de impossibilidades para o Brasil crescer, e isso foi produzido, de certa forma, pela nossa profissão. Quando vejo o Banco Central ser comandado pelo mito de que o produto potencial do Brasil é 3% e que, portanto, qualquer crescimento acima disso nos levaria de volta à inflação, eu fico realmente espantado. Porque não se trata de nenhum conhecimento científico, trata-se de um simples mito, e eu tenho brincado, mas com uma certa seriedade, que temos sido vítimas de um processo trágico de combinação de tarô com econometria, e os taro-econometristas têm construído certas teorias e mitos que têm sujeitado o Brasil a uma série e constrangimentos. A política econômica brasileira hoje não tem nenhuma novidade, é uma política que eu diria canônica: no mundo inteiro se usa o mesmo processo, onde se procura usar um sistema de metas inflacionárias com um câmbio flutuante, mas em nenhum lugar se usa o sistema de metas inflacionárias para produzir um desequilíbrio cambial como aqui, e usar desse desequilíbrio como um mecanismo oportunista para reduzir a taxa de inflação. Não há como discutir a política econômica, o que se deve discutir acho que é o mecanismo pelo qual ela é posta em prática. E há um ponto hoje que é consensual: ninguém mais discute – aliás, nunca se discutiu – a idéia de que com um “pouquinho mais de inflação é possível fazer um pouquinho mais de crescimento”. Lembro a expressão do velho Professor Gudin – que cada vez me convenço mais, foi talvez o melhor economista brasileiro. Se relerem hoje o “Teoria Monetária” (ele estava naquele momento exatamente no estado-da-arte, e se esse livro tivesse sido escrito em inglês teria se transformado num clássico),verão que ele dizia uma coisa que é absolutamente correta: “uma pequena inflação é rigorosamente igual a uma pequena gravidez: inevitavelmente cresce”. De forma que a melhor coisa é prevenir para depois não ter que remediar, e por isso o equilíbrio fiscal é coisa absolutamente necessária, nem precisamos discutir isso, e o resto está conforme as normas mais habituais imperantes na economia do mundo.

Eu me divertia muito quando ouvia dizer que a política do Lula era igual à de FHC, “era simplesmente a continuação da política de FHC”, como se Fernando Henrique tivesse inventado essa política em 95, e fosse originalmente uma política brasileira. Não era, e aquela política, na minha opinião, inicialmente, produziu um resultado muito interessante, e o Plano Real, certamente, é um dos planos mais brilhantes que os economistas brasileiros já imaginaram.

Pérsio Arida e Lara Resende estudaram como havia terminado a inflação depois da Primeira Guerra mundial, conseguiram mimetizar o processo de hiperinflação, sem que o país tivesse a necessidade de vivêla,e conseguiram a vitória sobre a inflação, que produziu uma espécie de anestesia geral no Brasil.

Digo isso, porque o Plano Real, no seu brilhantismo, não foi construído sob uma hipótese falsa, que depois foi usada, de que existia um desequilíbrio fiscal no Brasil. Praticamente o desequilíbrio fiscal tinha desaparecido no Governo Collor, pois ele fez uma liquidação da dívida, assim como no Governo Itamar Franco, e se produziu um equilíbrio que durou praticamente até 94, quando a inflação era produzida, na verdade, pelos mecanismos ainda renitentes de correção monetária, e que, aos poucos, foram encurtando seus prazos de aplicação: no início anualmente, depois semestralmente, trimestralmente, mensalmente, e no final já estávamos semanalmente.

A URV foi a extensão disso, o paroxismo desse processo, quando tudo se ajustava diariamente, e se construiu verdadeiramente um mecanismo de hiperinflação controlada, que produziu os resultados adequados porque o Brasil não entendeu até hoje que os salários foram fixados em URV, ou seja, fizemos um congelamento da distribuição de renda, o que foi o suporte do Real.

Quebramos duas vezes: em 1998, por causa daquele congelamento de câmbio que nos levou a um déficit de contas correntes gigantesco, e quebramos novamente em 2002, fomos ao FMI duas vezes (aliás, fomos três, quando pegamos 16 bilhões de dólares em meados de 2002) e nos deixaram numa armadilha terrível, essa que está aí, onde não há mais como aumentar impostos, isso provado pela retirada da última tentativa, a 232, quando Lula, na sua inteligência extraordinária, ao ver a Praça dos 3 Poderes cheia de engravatados da Avenida Paulista cheios de papéis nas mãos, percebeu que não dava mais para negociar, pensou “chegou a hora”, e retirou o processo. E por outro lado, todos nós sabemos que hoje, o sistema financeiro não consegue conviver com o aumento da relação dívida/PIB sem exigir aumentos de juros. Estamos, pois, numa armadilha, e que tem que ser resolvida.

A armadilha

A armadilha é complicada, porque a situação fiscal, ainda que aparente uma grande solidez, na minha opinião ainda tem grandes dificuldades. A maior elas é que nos últimos doze anos as despesas de Custeio do Governo cresceram 6% em termos reais, e o PIB cresceu 2,4%. Não é preciso fazer muito esforço para entender que duas tendências divergentes nesses níveis caminham para nenhum equilíbrio. De forma que o que se coloca hoje é como se irá controlar isso. E essa discussão é muito interessante, porque se assenta em três aspectos: nos gastos de saúde, nos gastos de educação e na Previdência. Nós hoje não gastamos em educação muito menos do que gastam países com renda per capita igual à nossa, com o senão de que a nossa eficiência em educação é extremamente baixa, e os indicadores mostram isso; na saúde isso se repete, gastamos o mesmo que países similares e a eficiência também é muito baixa, e a taxa de mortalidade abaixo de um ano comprova esse lamentável dado. Onde há certamente um desequilíbrio é no setor de Previdência e seguridade social, e aqui a coisa é muito complicada do que parece, pois nós misturamos algumas coisas, pois, na minha opinião, são três problemas diferentes, que juntamos num só, o que torna a solução impossível. Esses três problemas são, em primeiro lugar o do INSS, ou seja, o da aposentadoria do setor privado, que, se tiver, tem um desequilíbrio muito pequeno. O segundo é o da aposentadoria no serviço público, onde o desequilíbrio é gigantesco; nós, economistas, acreditamos que as pessoas se movem por incentivos, e vemos que no serviço público os incentivos não são poucos, basta ser
nomeado e o cidadão vai subindo, vai sendo promovido, e quando chegar aos 30 anos já se aposenta, em geral com uma aposentadoria muito superior às do setor privado (vemos agora, novamente a questão dos tetos, tentando serem rompidos), enfim, esta situação da previdência
pública é uma questão política, e a sociedade vai ter que decidir o que vai querer fazer com ela. E há um terceiro desequilíbrio, produzido por nós na Constituição de 88, quando construímos um sistema de welfare state equivalente ao de um país que tenha um nível de renda per capita dez vezes maior que o nosso.

Os problemas da Previdência, na verdade, são atuariais, ou seja, só se pode devolver à pessoa aquilo que ela contribuiu, e aí é um sistema de Previdência. No caso de assistência social o problema não é atuarial, é uma decisão da sociedade, e aqui vamos ter que encontrar financiamento para ele, mas não pode ser financiamento misturado com o da Previdência, precisa ser orçamentário. Esses problemas todos estão hoje concentrados na Previdência, e aí as despesas crescem de uma maneira muito séria. São três problemas diferentes, e se continuarem misturados não vamos resolver nenhum deles.

O crescimento

Hoje, o que todos nós desejamos é que se possa fazer um crescimento de 5 ou 6%, robusto, e que implique em algumas outras coisas; ele tem que ser feito com uma taxa de inflação parecida com a do mundo, tem que ser feito com uma redução das desigualdades e similaridade nas oportunidades para toda a sociedade brasileira, com redução das desigualdades regionais, e feito com equilíbrio em contas correntes, o que significa que esse equilíbrio tem que ser feito com uma taxa de câmbio e uma taxa de juros parecidas com as dos concorrentes. O Brasil não tem, na minha opinião, nenhuma desvantagem nos setores produtivos; se a eles se derem as condições isonômicas que têm os setores produtivos do mundo, a nossa produtividade é igual, ou até melhor que a dos demais. Se olharmos para a indústria brasileira em geral, para o chão-defábrica, ela está no estado-da-arte, ela compete tranqüilamente com as empresas estrangeiras, desde que tenha as mesmas condições que os
parceiros nas disputas. Se há um câmbio supervalorizado e uma taxa de juros mais elevada, já temos aí alguns inconvenientes, mas a coisa pega mesmo é quando se tira o par de sapatos de dentro da indústria e se vai levá-lo para o porto ou para a cidade, que é quando falha a infra-estrutura, falha a estrada, falha o porto, falha naquilo que está fora do processo produtivo,
no que era feito anteriormente pelo Estado, e com antecipação, que éo investimento de infra-estrutura, cuja ausência está reduzindo nossa produtividade em geral. Isso foi destruído. E a coisa mais estranha é que quando a carga tributária era de 26%, o Governo investia 5% do PIB, e hoje com a carga em 38% investe-se menos de 1%. Ou seja, o Estado ficou pesado demais e precisa, portanto, encontrar mecanismos para voltar a financiar a infra-estrutura. E aqui há uma coisa importante: hoje estamos investindo 20% do PIB, 1% é Governo e 19% é do Setor Privado. E o Governo se apropria de 41% do PIB, 38% de carga tributária e 3% de déficit nominal, e poupa e investe 1; o Setor Privado se apropria de 60% do PIB e investe 19, mais de 30%. Se conseguirmos fazer esses números serem 3% e 19% podemos voltar a níveis que já tivemos no passado. Há, portanto, um problema de balancear e de encontrar esses mecanismos. Esse processo de querer crescer 5% só terá futuro se nós pudermos ampliar os investimentos públicos sem violar as condições de equilíbrio, pois do contrário não adianta tentar fazê-lo. Estou convencido de que temos hoje uma taxa de juros muito superior àquela que seria uma taxa de juros de equilíbrio, que é parecida com aquela da taxa de retorno da economia, e estamos com uma taxa de câmbio supervalorizada, que iria se valorizar de qualquer jeito, o que simplesmente a imagem no espelho da desvalorização do dólar. Mas a supervalorização é produzida pelo diferencial de taxa de juros que permite hoje uma operação e derivativos na Bolsa de Mercadorias e Futuros de lucratividade espantosa. Freqüentemente vejo economistas afirmando que a taxa de juros não tem nenhum efeito sobre o câmbio. Cometem dois ou três erros graves. O primeiro é simplesmente a resposta ao seguinte: porque os estrangeiros vêm ao Brasil comprar reais? Porque o real é a mercadoria mais valorizada que existe hoje. Eles vão investir no real, e cada vez mais, porque na medida em que se criar uma convicção de que a taxa real de juros vai cair, eles antecipam o lucro comprando mais agora, e isso valoriza ainda mais o câmbio. A única solução para esse processo é ter um crescimento um pouco maior 4,5 ou 5%, e permitir que a taxa de câmbio volte para o seu equilíbrio. Para entender isso é simples, é só pegar a média dos países emergentes, excluído o Brasil e ver que a valorização média do câmbio foi 17%; a do real é 36%, então não precisamos argumento maior para afirmar que temos o câmbio sobrevalorizado.

Acho também muito pouco provável que se consiga realizar o crescimento de 5% se não se fizer, de alguma forma, o controle das despesas do Governo, para liberar recursos para investimentos públicos, pode ser por PPA, por PPP, por concessão, e reduzir a taxa de juros, para poder desvalorizar o câmbio, e dar condições para o nosso empresariado exercer sua competência competitiva. Não vamos ter ilusões: se a indústria não crescer em torno de 7% não há a menor hipótese do PIB crescer 5%.

Portanto, esta combinação do investimento público com o estímulo ao setor privado, para acender o “espírito animal” do empresário, nós não vamos conseguir realizar esse crescimento. Eu acho que o presidente tem um grande entusiasmo, eu acredito mesmo que o desenvolvimento econômico é um estado e espírito, apoiado em algumas condições objetivas: quando você não acredita que vai crescer não cresce, e quando o Banco Central decide que se crescer um pouco mais que 3% nós vamos ter inflação, ele, na verdade, impede o crescimento, pois no primeiro momento em que isso se manifesta ele puxa o juro real e o breca. E aí, porque que alguém vai investir, se já não estiver próximo da capacidade produtiva e não existir demanda na frente?

O velho Keynes mostrou que a economia é praticamente dominada pelas expectativas, e a hipótese sobre a qual se apóia a Teoria Econômica, a de que cada um cuida dos seus interesses, e que eles, de uma forma ou de outra, acabam ordenando os interesses gerais, é tão poderosa que desafia todas as demais ciências. Mas, talvez como troco, hoje a Psicologia e a Neurociência estão se vingando da Economia, mas, hoje, a grande conclusão (que já está em Keynes muito antes...) é que as granes decisões, as decisões realmente críticas, não se fazem na área do racional, mas na área do emocional. É por isso que, na minha opinião, temos uma possibilidade e fazer esse crescimento, se dermos ao setor privado as condições objetivas.”


O Economista