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18/03/2019
A dificuldade de recomeçar

Uma mulher frágil porém um pilar de ferro

Nos últimos 22 anos de minha existência dediquei a uma tarefa não muito convencional embora tendenciosa no mundo moderno: mudei 21 vezes entre países, estados, cidades.

Não seria nada demais se destas 21 vezes, no mínimo umas 4 eu tenha começado, ou recomeçado do ponto zero.

E quando escrevo zero, é realmente zero!

Algumas vezes acredito que até no -10 estive.

Para iniciar uma nova trajetória, é preciso deixar tudo, absolutamente tudo que pese no passado, em todas as conjugações existentes no dito tempo.

Caso contrario, a sensação será de acordar no umbral de si mesmo todos os dias.

Quando me formei em Direito na Universidade Católica de Santos, SP, decidi que minha vocação, era “ser juíza”!

Estudei uns 3 anos de 12 a 14 horas diárias, e quando alguém me questionava sobre esta vontade insana eu bravamente respondia que não havia outro caminho senão o que eu elegi.

Como todo jovem sonhador remando seu barquinho no infinito oceano, os ventos sopraram em outra direção.

Se eu desisti? Não!

Eu casei!

Mas por que casar significaria desvencilhar-se deste sonho?

Bom, a vida de meu marido não era nada ( e segue não sendo) usual. As viagens e mudanças eram (são) o ponto forte de sua profissão e vamos convir que ingressar no Poder Judiciário no Brasil estaria na contramão de ser uma cigana.

Mesmo assim eu levei uns bons anos andando pelo mundo com meus livros meus códigos e minha determinação um tanto caducos neste “sonho”.

Hoje, analisando minhas atitudes, percebo uma imaturidade descomedida, já que eu sabia em meu foro mais íntimo que estava diante de uma vida conjugal com conflitos de interesses insolúveis, se assim eu decidisse continuar.

A bem da verdade, meu casamento esteve entre trancos e barrancos por um tempo, entre o viver este amor que era enorme e o correr atrás de uma necessidade.

Necessidade porque eu, nesta época, era mãe solteira e havia decidido que conseguiria dar este orgulho a meus pais que apoiaram e acreditarem em minha “deliberação”.

Tinha certeza mais que absoluta que algum milagre tornaria possível a vida nômade e meu cargo jurídico.

No entanto, eu guardava um segredo.

Escondia um dinamismo calado que me permitiam ao menos tentar adaptar-me a novas vidas, em novos lugares.

Mas eu estava ali, amargada como forma de expressão revolucionária.

O ponto é que estava em guerra comigo e não com meu status quo.

Era verdadeiro vendaval de emoções, arrastando meu pequeno barco com a fúria das ondas revoltas.

Queria culpar alguém por minha escolha.

Não queria desistir mas não podia continuar naquele martírio diário.

Meu marido (não gosto deste termo) meu companheiro de vida nunca foi contra ou limitou nenhum de meus sonhos, que nesta altura já não se tratava de um sonho e sim de uma obsessão.

Olhava de “rabo de olho” para aquele mundo gigante que conhecia com o passar do tempo e realmente minha vontade era atirar-me àquela vida e simplesmente fluir.

Mas não! Estava absorta nas folhas dos códigos mofentos ainda que ele não representasse nada além de uma barricada desperdiçada.

Até voltei ao Brasil e decidi ser “senhora de meu destino”.

Regressei. Por que? Porque a verdade é que não se tratava mais de um sonho.

E, sim, da vergonha de desistir.

Escutava impropérios fantasiados de hosanas.

“Ah mas você sempre foi tão inteligente, não pode desistir e ser dona de casa”!

“E agora, você terá que escolher entre seu marido e sua carreira, não seja tonta marido você encontra outro”!

Tornou-se honra, ranço e inafortunadamente orgulho narcisista.

Nem sabia por que brigava. Mas algum inimigo estava impedindo a vitória triunfal, assim eu acreditava.

Pirei.

Como uma versão feminina de Don Quixote moinhos de vento eram monstros, cuspindo fogo a meus papéis acumulados no canto, cheios de pó, ressentimentos e culpas.

Ah! Claro que eu era culpada! Como podia abandonar a maior certeza de minha vida?

Estava afundando neste navegar ensandecido.

Perdi uns tantos pedaços de meu barquinho, ganhei outro timão mas segui já consideravelmente devastada na missão insubstituível.

Estava cansando.

Exausta em carregar a escolha caduca no tempo de uma menina de 21 anos.

Perguntava frequentemente, para não dizer, doentiamente, porque a vida tinha me colocado nesta encruzilhada.

Em algum lugar entre o inconsciente, subconsciente e consciente eu sabia que não era o que eu queria desde o dia que aceitei ser cidadã do mundo.

No entanto, não notei que a nova rota que havia traçado, e que tanto encanto trouxe a meus olhos, significava o fim desta missão.

E então, uma grande tempestade começou a formar-se em minha vida.

Uma tempestade que colocou fim a este barco enquanto eu assistia seu naufrágio

Um tanto dramático.

De fato! Foram anos lamuriando e rastejando pelo passado.

Um tempo que poderia ter aproveitado melhor.

Melhor porque como toda “mulher decidida”, segui as novas oportunidades que encontrei depois do fim do mar, mas sempre emburrada com o presente e saudosa do pretérito.

Não percebia que eu havia escolhido!

Não notava que um novo mundo girava brilhante e sedutor frente a meu corpo estarrecido.

Mas por fim, cansei.

Cansei de minhas lamurias e decidi retomar as rédeas de meus dias.

O barco estava naufragado mas eu podia nadar, construir outro, suntuoso, quiça pegar carona com uma baleia.

Bastava um passo nesta direção.

Relaxei e aceitei que minhas escolhas são as únicas responsáveis pelo caminho que percorro.

O mundo, as paisagens, as pessoas, as tantas culturas, modos de viver que tinha a oportunidade de conhecer viraram meus aliados.

Eu não entendia bem meu lugar no mundo mas isto era o que o Universo (ou o que cada um acreditar) estava mostrando.

O horizonte.

Não foi por isto que tudo resultou fácil.

Ao contrario, eu precisava recomeçar.

Não sabia por onde, onde ou como.

Nunca se tratou de uma profissão.

Tratava-se de ser.

Ser no sentido implícito.

Ser alguém para mim, por mim.

E quem eu era? Não alcançava responder nem em quarto escuro, com portas fechadas por um sussurro sequer.

Este recomeço foi perder-se.

Arruinar os padrões comportamentais até então tão bem delimitados e socialmente apresentáveis, quebrar o construído (mas já em ruínas).

Porque não bastava recomeçar, era preciso reinventar-me.

E só reinventamos o que deixamos colapsar, o que aceitamos emergir. E mais uma vez, para colapsar o obsoleto é preciso torna-lo autossufiente à luz e entender a necessidade de desluzir para construir.

Não há como emergir se não sabemos quem somos.

Ser não é definir seus padrões estéticos, suas falas copiosas, suas roupas tendenciosas.

Ser é encontrar-se. É deparar-se com si mesmo na esquina da vida, no meio da rua, entre os queridos, ou desafetos, é desvelar-se, desnudar-se, decompor-se.

A sapiência de seu eu, ou seu ser é a chave para recomeçar.

Se sabemos quem somos temos a opção de implodir o vicioso de nosso eu e recomeçar em outra dimensão de nós mesmos.

Quase impossível!

Quase!

Mas a vida encontra um meio de cooperar para este renascer, não sem antes te arruinar.

Foi assim que perdi tudo mais de uma vez.

E neste tudo, já sinto vergonha porque tratava-se de um tudo material. E o tudo material não representa ninguém.

Sobraram, por vezes, umas poucas malas com o básico do básico e a esperança e perseverança em não sucumbir.

Mas por que eu aceitei desistir lá atrás se a posteridade estava maculada desta sofrência?

Eu aceitei recomeçar, não?

Eu quis reinventar-me, não?

E a vida não se detém para que isto aconteça.

E sim, lá estava eu com as malas e um vazio enorme sem saber o que aconteceria. Mas e, sem dúvidas, de coração aberto.

E assim, meus vários recomeços ensinaram-me quem sou, o que sou, o que almejava ser.

Algumas vezes confesso que arremessei meu corpo no chão me rendendo.

E cada vez que isto acontecia, era mais difícil levantar.

Sem embargo, eu sabia que ali não poderia novamente estar.

As quedas tornaram-se degraus.

Nestes novos tempos, houveram despedidas, desencontros, dores insuportáveis, depressão.

E mesmo engolfada no dia a dia pelas mazelas, pelas obrigações, pelas dores, um pedaço de mim, estava criando forma.

Não sucumbia à multidão correndo em direção oposta e atropelando meus passos minúsculos.

O que de fato visível aos olhos dos mortais eu fiz para recomeçar?

Lutei.

O que de fato você estudou e o que decidiu “ser”?

Esta pergunta de soberbia tola não tem resposta objetiva.

Estudei, sim. Renovei, sim!

Mas o recomeçar não tem conexão apenas com o mundo dos fatos.

Posso contar o que contribuiu para recomeçar tantas vezes quanto foram imprescindíveis para seguir vivendo dignamente.

No México passei um ano entre idas e vindas de Veracruz e Guadalajara, em uma capacitação chamada “Psicoterapia Assistida com Equídeos (cavalos).”

Não é equinoterapia!

O importante é que estive convivendo num mundo que não sabia existir: aprendendo a ler o comportamento destes animais, no meio de indígenas, em acampamentos de dias em mata fechada.

Estudei yoga, aprendi outros idiomas.

Montei e desmontei casas, já perdi as contas de quantas vezes.

Ajudei meus filhos adaptarem-se aos novos mundos. O que na verdade, eles tiraram “de letra” sempre.

Fui faxineira, massagista, rooster, advogada, babá, secretina (secretária), e hoje estou aqui escrevendo.

Escrevendo porque é o que entendi que representaria o meu eu mais verdadeiro; escrevendo porque sempre foi uma paixão; escrevendo porque me faz sentir a magia da vida em formas diversas chamadas letras.

Tenho muito para contar, dividir, escutar.

Eu não decidi escrever, eu nasci escrevendo.

Escrevendo minha história. Uma história povoada por tantos outras.

Aqui eu saio de cena para dar espaço a meu querido chefe, editor, como quiser ser chamado mas carinhosamente sempre por mim.

Ele: Edson Navarro aceitou minhas loucuras escritas, meus pensamentos retorcidos, minhas poesias melancólicas e foi o maior responsável por este meu recomeçar.

O que ele tem haver com o texto?

Tudo.

As vezes o que precisamos para levantar é uma mão (que vocês podem chamar de anjo, amigo, parceiro, benção). Uma mão estendida firmemente.

E depois de tantos recomeços eu estou no mais fidedigno deles.

Ah! Se é fácil? Claro que não!

Eu estive em depressão (novamente), não acredito em mim muitas vezes, outras faltam inspiração, outras penso que este caminho não me levará a lugar algum.

Mas ele, este querido que apareceu em minha vida, sem mesmo comentar meus textos, no decorrer de alguns anos, publicou meus “escritos”, foi paciente e discreto quando por meses desaparecia ( o que acontece com frequência) , escreveu (poucas palavras rs) perguntando como eu estava, e mais.

Ele publica meus e-mails vez enquanto o que me deixa com os olhos cheios de lágrima por este incentivo não falado e por de algum modo ainda acreditar em mim.

Ele poderia ter desistido há tempos.

Mas não, ele tornou-se meu anjo da guarda.

Quando não estou aqui, ele encontra uma maneira de mostrar que eu sigo presente embora tão ausente.

Edson, você é minha maior inspiração para seguir neste recomeço.

Eu não o conheço pessoalmente, mais de 7 mil quilômetros nos separam.

E também não sei se ele sabe o quanto ele é admirado como ser humano, profissional, amigo.

Meu eterno obrigada, gracias, thank you.

Quanto a vocês que se deram ao trabalho de chegar até esta parte do texto: não desistam de recomeçar, reinventar-se.

Uma decisão não marca sua historia para sempre como um ferro em brasas.

Somos adaptáveis, capazes de mudar, e competentes para recomeçar um novo capítulo de nossa historia.

Daniele de Cássia Rotundo