08/05/2012
Raízes da terra

Parece que foi ontem que presenciei e vivi os encantos da simplicidade do meu rico interior, mas já se passaram cinqüenta anos desde que deixei meu pago.    Naquele tempo, dez quilômetros era uma distância enorme, principalmente quando a percorríamos no lombo de um cavalo, ou numa charrete puxada por um lerdo cavalo. Só usávamos o velho caminhão coletivo, em ocasiões especiais.

            Ficávamos meses sem ir à cidade e nosso contato com o mundo exterior, era através de alguns parentes - que esporadicamente nos visitavam -, dos fotógrafos conhecidos por nós como retratistas, e os mascates tagarelas que iam vender suas mercadorias nos sítios e fazendas.

            Lembro-me de um em especial conhecido pelo apelido de “Biche - Biche”. Sua descendência européia lhe conferia um avantajado nazo (nariz) e uma pronúncia enrolada. Em sua carrocinha de pneus, puxada por um preguiçoso cavalo, carregava uma grande variedade de mercadorias para vender, por exemplo: agulha, linha, botão, sabão de barra, batata-doce, fogos de artifícios na época de S.João, batatinha, cebola, soda cáustica, querosene, lamparina, rapadura, suspiro, maria-mole, balas, chicletes, biscoitos etc.

            Era simples e generoso, mas também um hábil comerciante. Tinha a capacidade de atender várias pessoas ao mesmo tempo, e a todos encantava. Sua chegada era uma festa. Mascateando criou todos seus filhos com dignidade - uma prole que muito orgulha nossa cidade.

            Lembro-me quando aparecia o retratista por lá – era uma correria para tomarmos banho, pentear os cabelos e nos vestir com a melhor muda de roupa que possuíamos, depois era só fazer uma pose no terreiro e aguardar a foto branco e preto, que demorava uma eternidade para chegar – de dois a três meses depois de tiradas. Estes retratistas também retocavam fotos antigas de casamento dos avós e pais, uma coisa meio artificial, mas que ocupavam um lugar de destaque na sala.

            Não menos interessantes eram os mascates de roupa - Libaneses e Italianos - com sotaques característicos que vinham a pé até nosso sítio após desembarcarem na nossa bucólica estação de trem chamada Tamoio. Traziam duas grandes malas – uma em cada mão. A abordagem deles falando sobre a qualidade dos tecidos era um show à parte. Falavam sem parar, pediam para as pessoas apalparem para sentirem a qualidade do pano, punham fogo em uma porção de álcool derramado no tecido para dizer que os mesmos eram à prova de fogo (nada a ver) etc. Nunca voltavam de mãos abanando! Meu pai, por exemplo, tinha cortes de casimira inglesa – de “origem duvidosa” - em estoque até poucos anos atrás. De uma coisa eu tinha certeza, eles acreditavam na máxima que diz: “Otário é igual caspa, raleia, mas não acaba”. Só pelo sacrifício de nos visitar, sentíamos na obrigação de comprar seus produtos - tínhamos que cativá-los para continuar nos visitando - éramos carentes...

            A todos estes ilustres mascates, que reinaram no palco da minha vida durante minha longínqua infância e que muito me desapertaram para o sonho de procurar uma ascensão social e conhecer o mundo além da nossa velha porteira, deixo aqui registrado meu carinho e meus sinceros votos de continuarem, no plano espiritual, vendendo a paz, harmonia, alegria e principalmente a esperança que tanto precisamos. Estou certo que lá no silêncio do céu vocês poderão ouvir o sussurro do infinito e gozarem um merecido e eterno descanso.

            E VIVA A PÁTRIA!

            [email protected]


Osvaldo Piccinin

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