Soltando as amarras

Acordo. Queria dormir mais. Se seis horas não foram suficientes, porque acredito que 15 minutos vão resolver o meu problema? É puro apego - à cama quentinha.
À escuridão do quarto, ao aconchego do marido e da filha, que se enfiou debaixo das cobertas pouco antes do despertador tocar...
Não quero abrir mão de nada disso.
Mesmo sabendo que é inevitável, mesmo lembrando que hoje mesmo eu vou estar de volta à minha cama quentinha, sofro para dizer "adeus".
Este é só o primeiro apego do dia.
Tenho dificuldade para tirar a roupa no banheiro gelado.
Depois, preciso de coragem para sair do chuveiro, que estava tão gostoso.
Levantar da mesa do café é outro esforço: um pedaço mais de pão com manteiga, outra lasquinha de bolo de cenoura.
O jornal do dia tem artigos, fotos, noticias e quadrinhos que eu vou querer guardar. Reservo para recortar mais tarde.
Finalmente, com certa preguiça, me despeço da família (seria tão bom ficar mais um pouquinho em casa) e vou trabalhar.
Nas horas seguintes, resistirei a varias outras separações, grandes e pequenas: é uma pena desligar o radio do carro
bem na hora em que está tocando uma musica legal; colegas se despedem e deixam saudades; as flores que eram tão bonitas, não tem mais viço e precisam ir para o lixo.
São muitas as amarras que me prendem às coisas.
E o que é pior: nem tudo a que me agarro é agradável... Pensamentos, por exemplo: não consigo deixar de me torturar com um erro cometido, de repetir pra mim mesma uma critica injusta, de remoer uma magoa qualquer.
Apego é um dos maiores motivos de sofrimento, mas só agora percebo isso.Eu achava que não. Curtia meu apego e até me orgulhava dele.
Fazia questão de cultivar a dor das separações: voltava de férias e passava dias perdida, com a cabeça longe. Ficava revendo os momentos mágicos e morrendo de saudades.
Toda musica, toda cena, toda frase me lembrava os dias vividos.
O presente era uma tortura a evocar o passado.
E eu pensava que era assim que tinha que ser. É muito fácil perceber que o apego é inútil. Nada, nadinha é nosso pra sempre.
Tudo nos escorre pelos dedos. A infância, as férias, os brinquedos favoritos, livros novos, amigos, namorados, pais, filhos, animais de estimação.
E todas as sensações e pensamentos - o calor aconchegante, o friozinho revigorante, o sabor de uma sobremesa, a paixão pelo novo namorado - todos mudarão, passarão.
Melhorei em relação ao meu apego. Já não fico desesperada no ultimo dia de férias - ao contrário: ele é tão feliz quanto o primeiro.
Não me incomodo tanto quando algum objeto de estimação se quebra: não era eterno mesmo.
Não sinto um aperto no peito quando penso nas filhas crescendo, quando me despeço de um amigo ou quando saio de um lugar sabendo que posso nunca mais voltar.
É bom, muito bom ser feliz no momento; é um alivio deixar que tudo siga seu rumo.
Eu ainda tenho algumas dificuldades com a cama quentinha, o chuveiro gostoso e os recortes de jornal, mas apesar desses barbantinhos, já experimentei a deliciosa liberdade de outras amarras partidas. E recomendo.

Egle Infante Ceraso

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