20/10/2006
Nosso Descaso

Cidade de São Paulo, Avenida Casper Líbero nas proximidades da Estação da Luz, tarde de sol de uma terça-feira e dezesseis horas e vinte minutos. Gente pra cá, gente pra lá e gente em círculo num mesmo local. Que estariam olhando? Dia claro e quente, quatro e vinte da tarde... Um homem inerte e sem vida estava estirado na calçado do meio da avenida. Agachado junto a ele, um policial esteve tentando reanimá-lo. Uma máscara de respirar oxigênio, jogada ao lado da cabeça do homem deitado, demonstrando-se inútil, ela, acusava as tentativas inúteis do policial salvar aquele homem. Que idade aproximada ele teria? Sua situação paupérrima, seu desalinho e descuido com a higiene impediam uma estimativa. O cenário do lixo a sua volta, na calçada do meio da avenida, parecia condizente com o que fora a sua existência. Uma mancha em seu lábio inferior e prolongando até perto do queixo, revelava o vestígio do que teria sido sua última refeição. Dia bonito de sol, gente vai e gente vem e pelas quatro e vinte da tarde de uma terça-feira, um homem desconhecido deu o seu último suspiro.

Mãe, este nome que mais revela o maior amor existente no mundo e também o maior desespero de quando um filho deixa este mundo, vem ao pensamento nessas circunstâncias de quando alguém parte, mesmo sendo um desconhecido. Um filho é como uma flecha atirada no escuro do destino que, pode cair num lugar da simpatia da vida onde ela lhe proverá toda sorte da realização dos seus desejos. Um filho é como uma flecha lançada na irresponsabilidade de uma noite e a flecha pode cair num lamaçal onde a vida está a lhe preparar tormentos, conturbações e desprezos humanos. Muitas flechas que nós já atiramos, hoje, elas estão tentando resistir da influência do lodo que prepararam para o local de suas quedas e nós ao tudo assistir, se temos alguma consciência, pensamos ter sido irresponsáveis no manejo de um instrumento que, sem direção atira seus projéteis e eles, os projéteis, que se resolvam como podem, por onde eles caírem.

Uma flecha atirada no escuro do destino esteve pelos espaços dos ares poluídos da incapacidade humana de se administrar para um mundo de igual dignidade para todos e ela, a flecha, caiu na calçada do meio da avenida. Um homem morreu. Em vida, despercebido, não atraia atenções. Morto, estirado na calçada, atraiu. Dia claro e quente do sol de primavera, as quatro e vinte da tarde um homem morreu e ficou exposto na calçada. O cinto de sua calça era uma cordinha amarrada em volta do corpo. Inexpressivo para outros homens, sua fisionomia de “enfim paz” tornou-o bonito para ser recolhido e retornar ao seio da natureza. Perante ela todos são iguais neste mundo em que os homens se consideram desiguais e uns melhores que os outros. Missa de sétimo dia com certeza não terá tido. Não tinha os requisitos exigidos para alguma intercessão por ele no pedir-lhe uma missa e aqui no mundo dos homens, quem não é estimado e nem lembrado, é esquecido nesse merecer “igual para todos”.

Este fato, reduzido e um tanto dramatizado, em quatorze de novembro de 2003, foi irradiado num programa de rádio que deixou de existir.

Altino Olímpio

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