14/10/2016
Cine Marajá e suas lembranças

 Franco da Rocha, Cine Marajá e suas lembranças

Aquela moça estava doente e acamada. Os dias se passavam e ela ficava a observar uma pequena árvore que ficava num espaço entre a janela do quarto donde ela estava e uma parede do lado oposto. Os dias eram frios e estavam sempre nevando. O vento forte e gelado aos poucos ia derrubando as folhas daquela árvore. Todas as manhãs a moça contava quantas folhas ainda restavam resistindo ao vento. Ela recebia visitas em seu quarto e também a de um velho homem tido pelo pessoal daquele lugar, como sendo apenas um ser humano simples, comum, mal vestido e desprestigiado. A moça o tratava bem e confidenciava para ele: Veja pela janela aquela pequena árvore com as folhas que lhe restam em seus galhos, sendo poucas agora e que o vento ainda não as derrubou. Em cada dia passado elas foram diminuindo. Sei que estou muito doente e quando a última folha cair derrubada pelo vento da noite fria e nevada eu vou morrer. E o velho a contradizia para confortá-la e que tudo era apenas imaginação dela.

Logo, numa noite nevou e ventou muito. Ao clarear do dia a moça, ansiosa, ela olhou pela janela. Ela viu que todas as folhas que restavam caíram da pequena árvore. Mas, sobrou uma que não caiu. A última folha não caiu, então, ela se animou, seu semblante se iluminou, pois, a última folha resistiu ao vento e isso lhe significou que ela não ia morrer. Algumas mulheres entraram no quarto e logo foram falando pra moça o que havia acontecido. Aquele velho homem fora encontrado morto, talvez por ter ficado muito tempo ao frio do relento, onde foi encontrado. A moça que havia ficado alegre se entristeceu pela morte daquele velho e amigo. Pensando sobre aquele triste e inesperado acontecimento, distraída a moça dirigiu seu olhar para aquela árvore desfolhada e naquele instante uma forte rajada de vento derrubou o pequeno galho que sustentava aquela última folha da árvore que ainda existia.

Mas, a folha não caiu, ela ficou suspensa no ar. Mas como foi possível isso? Então, a moça percebeu o que ocorrera. A folha não era folha. Era um desenho, era uma pintura dela na parede oposta donde ela estava. O velho homem a havia pintado antes de morrer de frio. Aquela última folha que não era folha foi pintada na parede para a moça acreditar que ela não iria morrer se uma folha resistisse ao mau tempo. Jogado ao chão próximo à parede ficou à vista os materiais que foram usados para a pintura daquela folha de árvore. E assim a moça entendeu que aquele sacrifício do velho foi para salvá-la.

Esta foi uma das quatro histórias contidas num filme que assisti no Cine Marajá da Cidade de Franco da Rocha, na minha juventude. Ao escrevê-la estive pensando naquela noite de então e as lembranças me foram surgindo. Dia de semana e sozinho fui àquele cinema porque, anteriormente vi o cartaz de propaganda daquele filme e me interessei em assisti-lo. Para quem antigamente ia pra Franco da Rocha, pra passear ou mesmo namorar, o principal problema era o fato de que pra se voltar de lá, o último trem passava muito cedo, antes das vinte e duas horas. Não havia outra condução para mais tarde. Não me lembro se já existiam os “cata loucos” (risos), aqueles ônibus assim mal apelidados, cujo trajeto deles era de Franco da Rocha até a Praça Princesa Izabel da Cidade de são Paulo.

Mas, lá no cinema o filme que eu quis assistir ficou por último, isto é, para depois dos trailers de outros filmes e do primeiro a ser projetado que não me recordo qual foi. Finalmente teve início o filme que eu quis assistir e o tempo foi passando e chegando a agonia do saber que ia perder o último trem para voltar para casa. Aquela dúvida, aquela disputa do “fico ou não fico” até o fim do filme foi vencida pelo “fico e aconteça o que acontecer depois”. Assim me acalmei e me concentrei no filme e o assisti até o fim.

Terminada a seção de cinema já bem tarde da noite, sai pela rua com a preocupação de como iria voltar para casa. Passei pelo Clube Dezessete, assim como ele era chamado e onde uma vez lá estive num baile. Já não havia mais ninguém pelas ruas. Tudo estava deserto. Mais a frente, passei pelo Cine São João e logo cheguei à proximidade da estação do trem. Seria onde iria decidir como resolver sair daquela situação preocupante, provocada que foi pela minha irresponsabilidade de jovem.

Valeu à pena assistir ao filme, mas, a consequência do depois dele foi sentir a aflição que eu senti: Ter que sozinho e na escuridão transitar a pé até Caieiras. Melhor seria caminhar pela ferrovia do que pela rodovia que demorava mais. E fiquei numa indecisão naquele “vou e não vou e daqui a pouco eu vou” por algum tempo. Sorte minha! Enquanto estive titubeando apareceu um automóvel e eu conheci o motorista. Um rapaz que já o havia visto lá no clube de onde eu morava, mas, nunca havia conversado com ele. Não me lembro porque ele parou o veículo próximo a mim, só lembro que aproveitei para lhe explicar minha situação de estar sem como regressar para onde eu morava. Nisso pedi-lhe uma carona. Ele, percebendo a “gravidade” da minha situação, disse para o amigo que estava com ele “vamos levá-lo”.

Aquele “anjo da guarda” da minha noite de irresponsável me trouxe até a estação de trem de Caieiras. Minhas lembranças chegam só até aqui. Esforcei-me para lembrar se naquele dia eu já morava na Rua dos Coqueiros de Caieiras ou se ainda morava no Bairro da Fábrica, mas, não consegui me lembrar. Se tivesse lembrado eu saberia se ainda tive que caminhar por mais de uma hora entre a escuridão e as matas que ladeavam a estrada até chegar ao Bairro da Fábrica com medo dos fantasmas, que como diziam, eles ficavam assombrando lá no fim da subida da famosa “Serrinha”, assim como ela era conhecida. Franco da Rocha de outrora tinha cinemas também transformados em lojas agora. Tudo é para o progresso, entretanto, “pela lembrança” sempre tenho regresso para onde quero.

                                                                                    Altino Olympio  



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