15/04/2017
A Semana Santa na Vila Leão

A Páscoa chegando e mais algumas lembranças renascendo.Lembrei-me destes dias santos,vividos na Vila Leão.Todos lá eram extremamente religiosos.Minha madrinha (Maria Ap. Sant’Anna) não fugia à regra.Eu criança, ao lado dela, sempre participei de tudo e agradeço emocionada por isso.Havia lá, constantes reuniões religiosas.Na Semana Santa especialmente, ela cumpria e nos fazia cumprir os rituais sacros.O jejum,as rezas, as ladainhas, procissões...

Tudo era vivenciado por mim em sua companhia sempre tão dedicada às praticas da fé,amor e bondade.Logo após o carnaval,nas segundas,quartas e sextas não comíamos nada de carne nas refeições.Eu me deliciava com as famosas omeletes,ovos fritos e a tradicional salada de sardinhas com tomate e cebolas que ela tão bem fazia.Nunca achei ruim e ainda hoje me remeto àquele tempo saboreando tais pratos.Tudo tinha início uma semana antes na missa do domingo de ramos.Na quinta feira santa as rezas prosseguiam culminando no domingo de Páscoa.

Numa determinada sexta feira santa,fui com ela assistir uma encenação ao vivo da Paixão de Cristo.O evento aconteceu em Francisco Morato que naquela época (inicio da década de60) era cercada de morros ,árvores,pinheiros e muita vegetação.Com cinco ou seis anos,lá fui eu.Foi também minha prima Maria (filha de Marina e Orlando Sant’Anna).

O espetáculo já naquela época emocionava qualquer um.Era difícil conter a emoção diante da crucificação.De mãos dadas com minha madrinha,segui a multidão no sobe e desce dos morros.Lembro que, cordas delimitavam o espaço onde os artistas passavam representando.A multidão se apertava e se comprimia num esforço e numa tentativa grande de ver de perto aquele magnífico espetáculo.Lembro-me de nós duas,paradas, sob uma árvore frondosa,distante do tumulto mas numa posição certeira para visualizar o hastear das cruzes.Lembro-me dos murmúrios e das minhas desesperadas lágrimas pela morte de Jesus.

Lembro-me do suicídio de Judas,enforcando-se num local próximo a nós.Lembro-me de minha prima Maria,desmaiando diante da cena trágica.Enquanto isso,na Vila Leão outro ritual era cumprido: a exposição de Judas.Bonecos de pano,com enchimento ,da altura de um adulto eram confeccionados, vestidos com roupas velhas e fixados em postes pelas ruas locais .Um entretanto, ficava estrategicamente exposto no “Campinho”,em frente à nossa casa

.Representavam a traição,o desamor e por isso receberiam o castigo.Expostos pelas ruas da Vila,nós crianças jogávamos pedras e espetávamos seus corpos com arames e paus.Era nossa reação, nada humana, ao que Judas havia feito a Jesus.No sábado de aleluia,já pela manhã eu esperava a malhação que acontecia por volta do meio dia.Grudada na cerca de tela de arame, feita pelo meu padrinho Juca, eu esperava,contando segundos.De repente, a gritaria e o esquartejamento feito por um grupo de moleques no mesmo boneco maltratado no poste da rua.Nele ateavam fogo e o espancavam até nada mais sobrar

.Muitos moradores, de suas casas, assistiam a “malhação” que simbolizava a punição e o castigo pela maldade.Na mesma noite do sábado,eu preparava um ninho,com palhas e uma folha de couve, no chão, ao pé da cama.Segundo diziam,a couve seria devorada por um coelho que no lugar deixaria um lindo ovo de chocolate.Por muitos domingos de Páscoa sorri de alegria ao acordar e ver a bela surpresa.

Mas ilusão tem tempo e prazo.Uma bela noite, acordei e flagrei minha madrinha colocando no ninho o meu presente de Páscoa.Nunca revelei a descoberta e a perda daquela linda fantasia.Continuei vibrando por muitos anos com os preparativos da Páscoa.Hoje muitos rituais importantes da semana santa deixaram de existir.Talvez porque em tempos modernos as pessoas prefiram abolir as tradições,ridicularizar comportamentos e desvalorizar a cultura de um povo.

Talvez porque, a emoção da semana santa hoje, esteja limitada apenas a se comer chocolates e bacalhoada .Não sei...Mas, para nós,sobreviventes de uma época de ouro, a Semana Santa e a Páscoa significam muito mais.Para nós, ainda prevalece o espírito da ressurreição, da união,da paz,da amizade e principalmente do perdão entre os homens.Nisto sim encontrei o maior legado deixado por Cristo e tão bem praticado por minha madrinha enquanto viveu.Tudo inesquecível e grandioso demais!
FATIMA CHIATI

Comentários:

Que beleza de crônica. Só mesmo oriunda da cabeça da Fatima que mentalmente restaura o nosso passado. Quem ler esta crônica vai "viajar" pro passado e descer na Estação "Almoços Familiares" escassos hoje daqueles preparativos tão elementares quando pelos quais, aves e animais domesticados eram sacrificados na presença das crianças. Quem se lembra de quando foi criança daqueles tempos e assistiu tais cenas lembrar-se-a agora de quais foram seus pensamentos diante daqueles preparativos anteriores aos almoços e quais foram seus sentimentos naquela ocasião, bem como durante eles quando as famílias mais se reuniam.

Altino

Judas o personagem simbólico do mal, malhado e queimado em sábados de aleluia, envolvia muita gritaria e fogos. É uma introdução dos portugueses e espanhóis com o crescimento dos centros urbanos, e atual “modus vivendi” esta tradição vem fenecendo gradativamente. Congratulo o texto de Fátima Chiati pela forma irretocável ao texto ” Semana Santa na Vila Leão”, porquanto me projeta às lembranças de minha idade de criança, onde muitos ovinhos eram escondidos por nossos familiares entregando-nos cestas vazias para encontrá-los. Quanto mais os encontrássemos era a incontida felicidade.

Anizio Menuchi

 

 



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