14/04/2022
A latência

DICIO Dicionário online da língua portuguesa:

Latência: circunstância temporal em que alguma coisa se desenvolve, antes de possuir sua forma definitiva; incubação: caso em latência.

Latente: que não se manifesta, que está presente de maneira oculta e invisível mas que pode vir à tona a qualquer momento.

Latejar: pulsar.

Latejando: pulsando.

Durante o isolamento imposto pela Covid, estivemos num período de latência em vários setores da vida: material, emocional, psicológico etc

Entendendo que abrigamos a latência constantemente como forma antecedente para a  execução.  

A cegueira temporária causada pelo desconhecimento global do que ocorria, nos tirou da zona de conforto, positiva ou negativa.

Embora seja ela  (cegueira), responsável pela sustentação, com certa estabilidade a esperança, da continuidade da humanidade.

Horizontes desconhecidos  surgiram em janelas pelo mundo, no lugar dos originais célebres por nossos olhos. 

Atentamos adaptar a vida física , o dia a dia a rituais ignotos.

Esta acomodação talvez tenha sido uma das mais complicadas vividas mundialmente nas últimas décadas.

O mundo dos conhecidos e desconhecidos deixou de existir em frações de horas.

E nos colocou no período de latência de algo que não tínhamos a menor ideia do que seria , do porvir. 

O planejado, o cogitado, ainda que em lascas de intenção, adentrou no melhor dos casos, neste lugar oculto, quase embrionário.

Provavelmente a urgência de proteção da capacidade pensante tenha executado com menos empecilhos o envio de projetos, aspirações, conceitos, lampejos de inspiração a este espaço, também temporal, no qual o movimento poderia ser classificado como inativo, não fosse a frequência da constância em tudo que há ou pode vir haver.

  

Para aqueles que tiveram acesso à informação, para os que tiveram acesso a ela e meios de algum tipo de ação contra a propagação da doença, e para os que nem tiveram acesso à informação do que acontecia, o planeta incubou desfechos proféticos.

Aos filhos famintos da África, aos filhos das guerras, dos submetidos e / ou subjugados à  miserabilidade da sobrevivência que por si, já arrebata a probabilidade de viver com V (maiúsculo), apenas tomou outra forma de tortura da existencia.

O que para eles pode ter mudado, foi  a rapidez da trajetória do definhamento da vida, o agente causador que muito antes de chegar como vírus, já estava instalado na falta de condições básicas, passando longe de uma vida ordinária. 

Aventados a este período, o que era, deixou de ser, e o que seria tal qual imaginamos, abandonou o posto de possibilidade.

Caímos no buraco do medo, da certeza da incerteza, no descontrole quase majoritário do acaso.

“Em latência” foi a arrumação que encontramos de conviver com o passado, que já não estaria mais obsoleto o suficiente para permanecer no subúrbio do tempo.

A privacidade da morte, da doença, do adeus perderam significação e não houve como fugir das valas comunitárias cavadas para enterrar as provas da derrocada da fragilidade do homem.

Este astro chamado Terra vagou pelo espaço, sozinho, perdido e desacreditado.

Enquanto o cenário individual e coletivo ruinava , revirava, debatia-se, definhava, um processo de espera dilatava-se paulatinamente nas profundezas destas dores.

Então, um sintoma da aversão ao doentio modo da reação humana, trincou a barreira entre a necessidade do apoio solidário, o significado (e capacidade) de amor,  e a mesquinhez latejante do mundo singular, egoisticamente estruturado nas diferenças. 

De forma particular a humanidade despertou!

Caolha, Manca, Surda e completamente ensopada de lágrimas. 

Latente. Isto era latente. A imoralidade do “modus vivendi” encontrou resistência na dor.

A força do que esteve em latência, emergiu, renasceu ou nasceu.

Um processo vencido, quando entendemos que a soma das indignações resultou na saída do estado aparentemente inerte.

Saímos em massa dos ensaios em bares de esquina de quinta, tiramos as armaduras da alma, o gesso das pernas, a maquiagem do corpo, as fantasias, e enfrentamos o espelho, porque a plateia desapareceu.

E como bem cantou o poeta Renato Russo: “nos deram um espelho e vimos um mundo doente”.

A superficialidade nas relações interpessoais foi arduamente castigada. 

O sofrer e a exaustão da existência nesta forma de vida, alvo do invisível, culminou no hoje de cada um, em tantas quantas perspectivas se possa imaginar de novas (ou não tão novas mas inutilizadas ) de exploração de lugares onde a maneira pré-pandemia não teria mais como sobreviver.

E tudo que existiu até o início da pandemia pode não mais perambular por aqui, ali, acolá.

Entre o que se imaginava como hipótese e o resultado propriamente dito, cruzamos vários apocalipses de conceitos e sentimentos.

Assim, vivemos constantemente esperando, incubando, reacionando a  condições, intencionais ou não, procedente, de algum modo, das chocadeiras que escolhemos (ou não). 

É fato que estamos maculados com o que aconteceu. Seguramente marcando uma era de transformação do “modus vivendi”, positiva ou não.  

Latencia, latencia, latencia.

O que precisamos incubar?

O que não precisamos ocultar?

Tudo sob pena de extinção definitiva, uma verdadeira fogueira queimando silenciosamente o que não aconteceu porque extrapolou o período de incubação , (um amor não vivido?), apodrecendo ( um pedido de perdão não expressado?) ou porque foi violentamente esquecido, sem chances de ser.

A ilusão da procrastinação é a vontade em latência?

Você está chocando o quê, para quê, por que?

O amor pode ser latente, procrastinado ou covarde?

O padecimento, se latente, legitimara constantemente as mazelas.

O medo, se latente, legitimara constantemente angústia, desaprovação, desesperança.

E, se de latente viajamos ao que lateja?

Quanto tempo despendemos em estados intermediários ?

Latente? Ou entorpecido?

Não importa !  

Deixa a vida seguir, sem você agir, sem vc sentir, e , assim, bem assim, não haverá decepção, frustração, comoção porque o estado vegetativo das nossas verdades não ditas, que até pode ser apenas procrastinação, facilitará uma vida de latência, um eterno latente e nunca presente.

Foi latente, agora latejante e quica no futuro entorpecido hibernante.

 

Daniele de Cassia Rotundo

 



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