Se você leu meu texto anterior, “Mudando para Mexico” , neste segue a continuação.
Mas, se você não leu o texto anterior, leia primeiro e volte aqui para continuar comigo nesta história.
Eu e as feirinhas!
Não me convide para ir ao shopping. Eu gosto mesmo daquela muvuca das feiras livres, com um pouco de tudo. Viagem sem feira típica não existe para mim.
Foi assim, azucrinando meu marido, que chegamos ao mercado central de Tapachula.
Parar o carro, onde? A rua disponível estava cheia de buracos com poças d 'água, uma quantidade média de sujeira, meia dúzia de caminhões e talvez 1 carro além do nosso.
Minha vontade de encontrar roupas e bugigangas era maior que o receio de descer com as crianças naquele beco.
A entrada era por uma escada ensopada e enlamaçada. Mas isto foi apenas erro de principiante, a porta principal estava do outro lado.
“Não encostem em nada, não encostem em nada!” repeti algumas vezes para as crianças, enquanto meu marido torcia a cara.
O lugar era um galpão com 2 pisos, várias divisões que formavam as “lojas”.
Havia pouca gente “vendendo” e o produto era o mesmo: roupas usadas antes dos anos 70!
Nem um palito de dente escrito : “Bienvenidos”!
Tenho cravado na memória, uma senhora de idade avançada olhando penetrantemente para mim enquanto eu perguntava se tinha roupas típicas. Não sei se ela entendeu, mas falou algumas coisas em uma língua que não era espanhol. Achei melhor agradecer e seguir com cara de plena.
“Denis, não é possível que este seja o mercado artesanal deles!”
Decidimos voltar ao hotel.
É claro que para meus filhos (ao menos naquela época) “feirinhas” não significavam nada além de tempo de duvidosa qualidade (com os anos isso mudou), horas de pé e vontade de conquistarem independência no Alaska!
Mesmo assim, nem mesmo eles conseguiram (ou conseguem) que eu desistisse de buscar “a autenticidade cultural expressada pela manifestação artística!"
E assim que a empresa providenciou um carro para que pudéssemos conhecer as redondezas mais distantes, seguimos entrando no mundo que por trás das feirinhas, abriria um horizonte ímpar, que não adivinhariamos um encontrar.
As imagens que veriamos se tornaram parte de uma história mergulhada nas coincidências por nossos trilhos, anos e anos depois.
Passado uns dias mais, pegamos uma estrada em direção à fronteira com a Guatemala: mão dupla, sinuosa e embora asfaltada na maior parte, perigosa pelos buracos e chuva. Com clima quente e localizado entre o mar e florestas nativas, a chuva não dá trégua o ano todo em Tapachula.
Estava com receio de onde estávamos nos metendo. Sem placas de qualquer tipo, o único que esperávamos é que as indicações dadas a Denis, fossem corretas.
Casas extremamente rústicas, de madeira, acompanhavam vários trechos do caminho. Literalmente na estrada, a maioria delas tinha janela com vista para os carros que passavam. Senhorinhas e senhorzinhos espiavam com atenção a movimentação.
Crianças brincavam no que parecia ser o “quintal”: um espaço de terra que dividiam com a mata inquebrantável. Uns e outros caminhavam na beirada da estrada, do mesmo lado onde estavam as casas, em direção às portas. Tudo com ar de corriqueiro.
Estive sem palavras para aquele retrato!
Me questionei sobre o que deveriam pensar, como seria viver naquele lugar longe da estrutura que nós achamos mínimas para sobreviver. Ali não havia chance de ter internet, sinal de telefone, televisão.
A estrada estava no meio do caminho desta gente, invadindo-os e servindo de testemunha da certeza da existência de uma realidade “sobrenatural” ao universo deles.
Tenho tatuado em minha alma, o rosto de uma idosa na janela de um casebre de madeira desgastada com alguns traços de pintura azul velha. Foram segundos que para mim representaram uma eternidade. Ela devia ter uns 100 anos. Sua pele mais escura estava visivelmente queimada pelo sol, e totalmente enrugada. E as rugas contavam histórias. Longos contos de uma vida impensável.
Paramos numa espécie de restaurante de uma finca de café onde começamos conhecer o outro lado daquele mundo. Com panorâmica espetacular de plantações de café entre tantas outras árvores, plantas exóticas, coloridas e vulcões, o ar puro misturava-se com o vento frio trazido pelo avançar das horas.
A diferença das pessoas que vimos nos arredores da estrada e os proprietários das fincas de café era gritante: olhos claros, pele cor de neve e palavras em outro idioma. Mais um universo existia por ali.
Seguimos e seguimos até encontrarmos um povoado, onde supostamente estavam os artesãos.
Descemos do carro, entramos num galpão quentíssimo que hoje tenho dúvidas se realmente existia! Em mesas, alguns objetos acumulavam pó. Não acredito que muita gente passasse por aqueles lados. Encontramos brinquedos feitos com madeira, argila e trançados de cordas. Até pouco tempo, minha filha ainda guardava uma girafinha cor de rosa feita apenas com fitas.
Comprei para mim as duas e únicas saias de retalhos de tecido colorido. Uma delas ainda uso em dias ensolarados.
O próximo passeio deveria ter sido de barco no rio para conhecer algo de vegetação e jacarés.
A entrada do local onde “embarcamos" estava no fim de uma rua sem saída, não asfaltada e também sem indicações.
“Oi, é aqui que tem o passeio de barco?”
O senhor resmungou algo e fez sinal que o seguíssemos por tábuas de madeira equilibradas não sei em que estrutura, mas em cima do que para mim estava mais para um lago do que um rio. Paramos em frente a uma barraca e ele fez sinal que esperássemos e desapareceu. Eu e Denis entendemos que ele havia ido buscar o barco.
O senhor voltou, negociou o preço ( que hoje sabemos que foi “alto”) e nos mostrou uma canoa estacionada na lateral da barraca. Sim, uma canoa com um pedaço de toldo surrado, amarrado em delgada madeira, que mal cobria as crianças.
A princípio eu pensei que a canoa nos levasse até o barco, mas não demorou para que entendesse minha tolice. E já haviam sido tantos foras que o problema deveria ser nós mesmos. Então, bateu um sentimento de culpa, sabe? Se para eles aquilo era um barco, então era um barco e ponto. Engasgados descemos ao “barco”, carregando mochilas e as duas crianças.
Para diminuir minha aflição, na super mochila trazia bonés, protetor solar e repelente.
O barquinho não tinha motor, era remo mesmo.
O passeio foi embrenhado na vegetação que se acomodava entre o rio e barrancos, com medo de que algum crocodilo aparecesse e virasse a canoa.
As crianças adoraram. Infelizmente naquele momento não estávamos preparados para esta aventura e só respirei quando entramos no carro e travei as portas.
Hotel. Novo dia. Pirâmides.
Quando Denis falou das pirâmides em Tapachula, minha alegria “atravessou o mar”!
O dia estava mais quente que o inferno costumeiro. Denis dirigiu 30 minutos e estávamos no estacionamento das Pirâmides.
Vários “muchachos” se aproximavam do carro oferecendo vaga, água, abanico, apito imitando animais, chapeu mexicano etc Os vendedores brotavam em numeros pares, talvez guiados por meus anseios de feirante. E se tem algo que o mexicano faz bem, é atordoar turista (enrolar ).
Por fim, entramos. Andamos, andamos debaixo de um sol escaldante.
Vários grupos de turistas de todos os lados do planeta perambulavam com guias turísticos.
Quando por fim chegamos às “pirâmides”, eu perguntei onde estavam as "pirâmides'', e foi frustrante descobrir que as ''pirâmides” , não eram figuras geométricas tal como "pirâmides''. E sim, palanques de terra e pedra, assim de simples.
Morros aplastados. As "pirâmides" eram ruinas. Mas “vendidas” como pirâmides.
Talvez devesse ter algum pudor em contar minha ignorância no assunto. Mas minha decepção foi tão grande…esperava algo sobrehumano. E hoje entendo o contexto em que são conhecidas as pirâmides no México, mas na época me senti enganada mais que envergonhada.
Mesmo assim, subi naquelas que pude, analisei os desenhos incrustados nas construções, imaginei uma gente inimaginável.
Na saída comprei badulaques para turistas.
Um pouco antes da nossa mudança para o México, fizemos várias visitas a museus na Califórnia, e tivemos a oportunidade de conhecer a aeronave Endeavour, sua "carcaça" na verdade, em exposição na época no California Science Center, em Los Angeles
Agradeci aos maias, astecas, tapachulenhos, cientistas modernos, a NASA, a meu marido….pela oportunidade de em menos de 1 semana tocar um solo cerimonial, fundado 1500 A.C e, a estrutura de uma das aeronaves espaciais mais importantes da história, que completou 25 missões, entre elas a construção da Estação Espacial Internacional (ISS).
Conclusao?
Não encontrei uma feirinha como imaginava.
Encontrei outra bem maior.
No meio “do nada” e de tudo, de pessoas distanciadas por tantos quilômetros, esbarramos com feiras de interrogações, reflexões e a certeza de que de fato, somos completamente leigos sobre as faces que cobrem este mundão e que acreditamos ser capazes de delinear, delimitar em mapas, números e um punhado de descobertas desenterradas por centenas de estudiosos!
Na esquina da simplicidade, na porta do que parecia ser apenas um beco perdido no tempo, um povo falando línguas secretas, surrateadas por colonizadores sedentos, embriagados pela soberba de egos inflados, legitimados por mentes doentes, infectadas pela abundância da presunção de superioridade, ignorantes ditos mais almados pela veracidade de seus deuses, que longe de representarem a essência da vida, serviram de fantoche para subjugar povos.
Povos como estes que encontrei por estes caminhos que conto.
Gente enrugada pelo tempo que avança sobre o corpo, gente enrugada que resistiu diminuindo a voz e curvando- se a verdade dos enviados do mundo dos grandes.
Gente encrespada, que suportou as investidas de sua catequização forçada e mantém atrás das portas de vielas, um chumaço de tradições contadas e cantadas no idioma quase extinto, não fosse a capacidade de resistir calados, escondidos.
É então, que lhes exibo o artesanato da vida. Aqui os nativos indígenas descendentes de maias e astecas; e ali os descendentes de colonizadores, de investidores europeus.
Se até então estava em choque com tanta discrepância do mundo que viemos, depois destas experiências pouca coisa fazia sentido.
Voltamos para o hotel, e o que visitamos nos demais dias não chocou mais.
Eu tive vergonha de minhas preocupações.
Estes cenários me fizeram pensar que o conceito de miserabilidade está longe de ser reflexo da escassez material! Ela sim representa o indubitável desconhecimento de valores inacessíveis a comunidades ditas e entendidas como símbolos de civilidade.
Me despi e despedi das armaduras limitantes que trajamos quando atravessamos portas de universidades com um canudo na mão. Para entender, me encontrar, era assim que precisava estar: livre.
Nos próximos dias recebemos a notícia que não ficaríamos em Tapachula.
Iríamos viver na cidade de Veracruz, no estado de Veracruz.
Começamos a arrumar as malas novamente. Apenas uma parte de nossas coisas nos acompanharia, o resto chegaria, algum dia, em caminhão.
Mas antes de seguir esta historia, quero apresentar Tapachula! (no proximo texto)
Daniele de Cassia Rotundo