Medicamentos e microbioma: o que considerar na hora da prescrição
Eli Paes
16 de junho de 2025
Formas eficazes de combater vírus, bactérias, fungos e vermes nocivos à saúde representaram grandes avanços na medicina e contribuíram para o aumento importante da expectativa de vida humana ao longo do século passado. No entanto, à medida que o conhecimento sobre o papel desses mesmos microrganismos na promoção e manutenção da saúde se aprofunda, surge a necessidade de um novo olhar sobre o impacto desses tratamentos.
A lista de medicamentos que alteram diretamente a microbiota é longa. Além de antibióticos, antivirais, antifúngicos e vermífugos, inibidores da bomba de prótons, anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), laxantes, antidiabéticos orais, antidepressivos, antipsicóticos, estatinas, quimioterápicos e imunossupressores também podem levar a disbiose.
Um estudo publicado em 2020 no periódico Nature Communications , que analisou o impacto de medicamentos comuns na composição e função metabólica da microbiota intestinal, mostrou que, das 41 classes de medicamentos analisadas, 19 tinham associação com alterações no microbioma, sendo antibióticos, inibidores da bomba de prótons, laxantes e metformina os que mais tiveram impacto.
“Ainda não há protocolos que visem preservar a microbiota durante tratamentos [farmacológicos]”, afirma a Dra. Maria Júlia Segantini, coloproctologista e membro da Sociedade Brasileira de Coloproctologia (SBCP). “Pesquisas futuras devem buscar definir biomarcadores de disbiose induzida por medicamentos específicos e, potencialmente, adaptar terapias biológicas vivas para combater essa disbiose provocada por fármacos.”
O que se sabe
Os antibióticos, antivirais, antifúngicos e vermífugos eliminam patógenos, mas também podem desequilibrar a microbiota de intestino, pele, boca, pulmões e trato geniturinário.
“Esse ecossistema também atua como parte do sistema imune inato e modula o equilíbrio entre a inflamação e a homeostase. Também há evidências de participação do sistema nervoso por meio do eixo cérebro-intestino”, explicou a Dra. Maria Júlia, acrescentando que essa população de microrganismos auxilia ainda na produção de vitaminas, como vitamina K e do complexo B.
“O microbioma pode perder sua capacidade de impedir que patógenos se instalem. Isso decorre de perda de diversidade microbiana, mudanças nas interações entre espécies e na disponibilidade de nutrientes”, complementou.
Os antibióticos, como já é sabido, eliminam espécies bacterianas de forma indiscriminada, reduzem a presença de bactérias benéficas no intestino e, com isso, favorecem o crescimento de microrganismos patogênicos oportunistas. Porém, além do efeito direto sobre microrganismos, diferentes medicamentos podem alterar a microbiota intestinal por vários mecanismos ligados às suas ações específicas. Veja alguns exemplos a seguir:
Inibidores da bomba de prótons: podem facilitar a translocação de bactérias da boca para o intestino e afetar as funções metabólicas da microbiota intestinal. “Em usuários desses medicamentos, pode haver enriquecimento de vias relacionadas ao metabolismo de carboidratos, como glicólise e metabolismo de piruvato, indicando possíveis alterações no metabolismo intestinal”, explicou a Dra. Maria Júlia.
AINEs: podem modificar a função e composição da microbiota intestinal, favorecer o crescimento de espécies patogênicas e diminuir a diversidade das bactérias preexistentes por reduzirem a presença de bactérias comensais benéficas (como Lactobacillus e Bifidobacterium). “Isso decorre das alterações na permeabilidade da parede intestinal, por conta da inibição das prostaglandinas que auxiliam na integridade da barreira intestinal, da enteropatia induzida pelos AINEs e das interações medicamentosas”, contou a gastroenterologista.
Laxantes: o trânsito intestinal, quando acelerado pelo uso dos laxativos, pode levar a um comprometimento da qualidade da microbiota e do balanço dos ácidos biliares no intestino. Os laxantes osmóticos, como lactulose e polietilenoglicol, podem diminuir a resistência a infecção. “Estudos em modelos animais indicam que o polietilenoglicol pode aumentar a proporção de Bacteroides e reduzir a abundância de bactérias Bacteroidales, com repercussões duradouras na microbiota intestinal. Os laxativos estimulantes, além de causarem um aceleramento do fluxo evacuatório, podem levar à diminuição na produção de ácidos graxos de cadeia curta, importantes para a saúde intestinal”, explicou a Dra. Maria Júlia.
Quimioterápicos: os quimioterápicos podem influenciar significativamente a microbiota intestinal e afetar composição, diversidade e funcionalidade, o que, por sua vez, pode impactar a eficácia do tratamento e a ocorrência de efeitos adversos. “A 5-fluoruracila levou à diminuição na abundância de gêneros anaeróbios benéficos, como Blautia, e aumento de patógenos oportunistas, como Staphylococcus e Escherichia coli, durante a quimioterapia. Além disso, pode levar a um aumento na abundância de Bacteroidetes e Proteobacteria, enquanto reduz Firmicutes e Actinobacteria. Essas mudanças podem afetar a função da barreira intestinal e a resposta imunológica”, contou a gastroenterologista. “Outros problemas relacionados com a disbiose induzida pela quimioterapia são os próprios efeitos adversos, como diarreia e mucosite.”
Estatinas: de acordo com a Dra. Maria Júlia, estudos em modelos murinos indicam que o tratamento com estatinas, como a atorvastatina, pode provocar alterações na composição da microbiota intestinal. “Essas mudanças incluem a redução de bactérias benéficas, como Akkermansia muciniphila, e o aumento de patógenos intestinais, resultando em disbiose intestinal. O uso de estatinas pode afetar a diversidade da microbiota intestinal, embora os resultados variem conforme o tipo de estatina e o contexto clínico.”
“As estatinas podem ativar receptores nucleares intestinais, como os receptores X de pregnano, que modulam a expressão de genes envolvidos no metabolismo de bile e na resposta inflamatória. Essa ativação pode contribuir para as alterações na microbiota intestinal e nos processos metabólicos associados. Embora as estatinas tenham papel fundamental na redução do risco cardiovascular, suas interações com a microbiota intestinal podem influenciar a eficácia do tratamento e o perfil de efeitos adversos”, afirmou a médica.
Imunossupressores: o uso de imunossupressores, como corticoides, tacrolimus e micofenolato, tem sido associado a mudanças na composição da microbiota intestinal. “A disbiose induzida por imunossupressores pode comprometer a barreira intestinal, aumentar a permeabilidade e facilitar a translocação bacteriana. Isso pode resultar em infecções [por patógenos] oportunistas e complicações pós-transplante, como rejeição do enxerto e diabetes pós-transplante”, explicou a Dra. Maria Júlia.
“A alteração da microbiota intestinal por imunossupressores pode influenciar a resposta imune do hospedeiro. Por exemplo, o tacrolimus tem sido associado a um aumento na abundância de Allobaculum, Bacteroides e Lactobacillus, além de elevar os níveis de células T reguladoras na mucosa colônica e na circulação, o que sugere um papel na modulação da imunidade intestinal”, disse ela.
Antipsicóticos: os antipsicóticos podem afetar a microbiota intestinal de diversas maneiras, influenciando a composição e diversidade bacteriana, o que pode contribuir para efeitos adversos metabólicos e gastrointestinais.
“A olanzapina, por exemplo, em estudos com roedores, demonstrou que aumenta a abundância de Firmicutes e reduz a de Bacteroidetes, o que resulta em uma maior razão Firmicutes/Bacteroidetes, associada ao ganho de peso e à dislipidemia”, disse a Dra. Maria Júlia.
Ela contou que a risperidona, também em modelos animais, aumentou a abundância de Firmicutes e diminuiu a de Bacteroidetes, correlacionando-se com ganho de peso e redução da taxa metabólica basal. “A transferência fecal de camundongos tratados com risperidona para camundongos virgens resultou em diminuição da taxa metabólica, sugerindo que a microbiota intestinal mediaria esses efeitos.”
Tratamentos com aripiprazol, relatou a médica, aumentaram a diversidade microbiana e a abundância de Clostridium, Peptoclostridium, Intestinibacter e Christensenellaceae, além de promoverem aumento da permeabilidade intestinal em modelos animais.
“Assim, o uso dessas medicações pode levar a alterações metabólicas, como ganho de peso, hiperglicemia, dislipidemia e hipertensão. Isso se deve à diminuição da produção de ácidos graxos de cadeia curta, importantes para a integridade da barreira intestinal. Outra alteração frequentemente encontrada na prática clínica é a constipação induzida por essas medicações. Essa alteração funcional também pode gerar alterações na microbiota intestinal”, contou.
Antidiabéticos orais: os antidiabéticos orais influenciam a microbiota intestinal de maneiras distintas, a depender da classe terapêutica. Mas nem toda interferência medicamentosa no microbioma é prejudicial. A liraglutida, um agonista do receptor do peptídeo 1 glucagonoide (GLP-1), proporciona o crescimento de bactérias benéficas associadas ao metabolismo. “Já a exenatida, outro agonista do GLP-1, apresenta efeitos variados e pode aumentar tanto bactérias benéficas quanto inflamatórias”, explicou o Dr. Álvaro Delgado, gastroenterologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
Ele conta que, em modelos animais, essas alterações provocadas pelos agonistas do GLP-1 estão ligadas a alterações metabólicas, como maior tolerância à glicose. “Em humanos, foi observado aumento de bactérias como Faecalibacterium prausnitzii, com efeitos positivos. Contudo, são necessários mais estudos para avaliar os impactos clínicos.”
A metformina, por sua vez, tem sido associada ao aumento da abundância de Akkermansia muciniphila, uma bactéria benéfica que degrada mucina e produz ácidos graxos de cadeia curta. “Essas bactérias estão associadas a melhora da sensibilidade à insulina e redução da inflamação”, contou o Dr. Álvaro.
A Dra. Maria Júlia contou que estudos em camundongos mostraram que a vildagliptina também tem papel positivo na alteração da composição da microbiota intestinal, aumentando a abundância de Lactobacillus e Roseburia, e reduzindo Oscillibacter. “Esse mesmo efeito benéfico é visto com o uso da sitagliptina”, disse.
Estudos em modelos animais também indicam que a empagliflozina e a dapagliflozina aumentam as populações de bactérias produtoras de ácidos graxos de cadeia curta, como Bacteroides e Odoribacter, e reduz bactérias produtoras de lipopolissacarídeos, como Oscillibacter.
“Não há ainda muitos estudos referentes ao uso das sulfonilureias na microbiota intestinal, portanto sua ação na microbiota ainda é controversa”, contou a Dra. Maria Júlia.
Antivirais: o tratamento antiviral pode influenciar a microbiota intestinal de maneiras complexas, dependendo do tipo de infecção e do medicamento utilizado. “Embora muitos estudos se concentrem nos efeitos da infecção viral na microbiota, há evidências de que o tratamento antiviral também pode restaurar a composição saudável da microbiota, promovendo benefícios adicionais à saúde intestinal e imunológica”, contou a Dra. Maria Júlia.
Em modelos murinos com infecção crônica pelo vírus da hepatite B, o tratamento com entecavir restaurou a diversidade alfa da microbiota intestinal, que havia diminuído devido à infecção. Além disso, observou-se a recuperação de bactérias benéficas como Akkermansia e Blautia, associadas a proteção da barreira intestinal e redução da inflamação hepática.
Estudos indicam que o tenofovir pode auxiliar na recuperação da disbiose intestinal induzida pela infecção crônica pelo vírus da hepatite B e promover a restauração da composição microbiana saudável.
“Especificamente, observou-se aumento de Collinsella e Bifidobacterium, bactérias associadas à produção de ácidos graxos de cadeia curta e à modulação da resposta imunológica”, disse a médica.
O uso de antirretrovirais, como lopinavir e ritonavir, tem sido associado a alterações na composição da microbiota intestinal de pacientes que vivem com o vírus da imunodeficiência humana (HIV). “Observou-se diminuição de Lachnospira, Butyricicoccus, Oscillospira e Prevotella, bactérias produtoras de ácidos graxos de cadeia curta que são importantes na saúde intestinal e na modulação da resposta imunológica.”
Antifúngicos: como efeito colateral, os antifúngicos acabam eliminando também fungos comensais, que “compartilham nichos intestinais com as bactérias da microbiota, balanceando suas funções imunológicas. Quando modificadas, culminam em disbiose, piora de patologias inflamatórias — como colite e doenças alérgicas — e podem aumentar a translocação bacteriana”, explicou a Dra. Maria Júlia.
O fluconazol, por exemplo, reduz a abundância de Candida spp., enquanto promove o crescimento de fungos como Aspergillus, Wallemia e Epicoccum. “Observou-se também um aumento relativo de Firmicutes e Proteobacteria e uma diminuição de Bacteroidetes, Deferribacteres, Patescibacteria e Tenericutes”, explicou.
Vermífugos: vermífugos também podem influenciar a microbiota bacteriana e fúngica intestinal e alterar a modulação da resposta imunológica, além de trazerem efeitos específicos dependendo do tipo de fármaco utilizado.
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Citar este artigo: Medicamentos e microbioma: o que considerar na hora da prescrição - Medscape - 16 de junho de 2025.