- “O que eu fiz até agora que não percebi as rugas nas laterais dos meus olhos?
Onde eu parei na minha trajetória que não cheguei ao quintal para admirar o fim de tarde dos últimos 10 anos ?”
-” Até agora você fez o que deveria ter feito.
Fez o que a vida, o destino e o livre arbítrio apontaram.
Fez o que se propôs a fazer, consciente ou não.
Fez o que não tinha ninguém para executar, porque cada um faz o que precisa fazer, sem pestanejar.
Você doou os brinquedos, distribuiu os livros, vendeu o que sobrou, e fez o resto caber em poucas malas e nos bagageiros do trem da vida, nas tantas vezes que precisou levantar acampamento e recomeçar: sem os brinquedos, sem os livros, sem tanta tralha desnecessária. Você fez o que precisava ser feito.
Você foi na aula de yoga da escola, na comemoração da primavera, verão, outono e até do inverno.
Você estava na porta da fila da escola, comprando do moço, o queijo caseiro que eles gostavam.
Você saiu apressada até a lojinha de tecidos no canal 4 para buscar a sinhaninha da saia do vestido da festa junina.
Você fez o que precisava ser feito. Milimetricamente com imparcial precisão só o que deveria ter feito!
Você ficou estacionada na porta da escola, esperando o silêncio do telefone.
Fez as compras da semana por uma penca de anos, carregando tudo nos braços porque nas costas levava as mochilas e nas mãos as pequenas mãos dos seus pequenos.
Lavou as mamadeiras, esterilizou e guardou nas caixas em cima do móvel da cozinha, porque ali não demoraria para encontrar uma limpa, quando a outra caísse com o bico para baixo, justo no chão da sala que limpava todos os dias!
Mas o que você fazia enquanto o mundo corria pelas grandes avenidas dos bem sucedidos?
Você fez o que deveria fazer, como deveria ser feito, daquele modo que só você poderia fazer.
Você arrumou as camas, dia após dia, sem falhar, porque as camas não podiam estar desarrumadas.
E não faz muito que asseou, dobrou e guardou as roupas das crianças, as suas e as dele. Separou as que não serviam, em cada despedida de estação, e juntou tudo na bolsa de palha, para o orfanato que visitava vez ou outra.
Você fez o que precisava ser feito, nem mais nem menos.
Fez porque a você cabia fazer exatamente o que fez, até agora.
Fez o café da manhã, o lanche da escola, a comida do almoço, o lanchinho e cortou a frutinha da noite enquanto esquentava o chá de camomila.
Cuidou dos cachorros que a veterinária resgatou, porque alguém precisava cuidar.
Organizou! Organizou a vida dele, a dela, a do padre, da freira e até da vizinha encrenqueira. Por que ? Porque até agora, assim tinha que ser.
Você rezou. Rezou na igreja de São Tadeu, Santo Antônio, na Capela da entrada da escola, no reino de Oxum, nas águas de Iemanjá, nos templos de umbanda e nos budistas.
Rezou no pé da cama, da mesa, no banheiro, nas escadas do consultório, enquanto andava, pensava e dirigia por ruas de puro azar.
Rezou quando se foram, quando voltaram, quando ele ligou, se foi e de novo voltou.
Você esteve ali, por lá e acolá, até agora, esperando o que tinha que esperar.
Se você estudou? E como! Estudou as lições da vida, da morte, do ontem, do hoje e quiçá do amanhã.
Aprendeu, porque assim era para ser, para fazer como tinha que ser.
Aprendeu costurar, remendar e esticar as contas do mês que não tinha nada para dar.
Aprendeu a sorrir carregando a inocência de seu filho.
Cantou com sua boneca,
Tem tanta coisa que fez que não poderia elencar.
Você não percebeu, mas foram muitas vezes que parou na porta do quarto espiando ele descansar.
Acho que até agora, porque precisava ser feito.
Fez o que não podia deixar de fazer, porque só você tinha o poder de fazer.
Fez o que tinha que ser feito.
E daqui para frente, você seguirá fazendo o que puder ser feito, no compasso do que deve ser feito, sem lamentar nem questionar.”
- “Mas eu pintei o armário, e não fiz o que acho que deveria ser feito.
Fiz artesanato com pneu velho, e acho que não fiz o que deveria ter feito.
Deitei quando todos dormiram e perdi o tempo que não fiz o que deveria ter feito.
Passei as tardes na loja da minha amiga, escutando seus conflitos e temores uma e outra vez, e outras também. E não fiz o que acho que poderia ter feito.
Tomei café na casa da benzedeira, e não fiz o que precisava ser feito.
Perdi meu tempo.”
- “Você fez o que precisava ser feito, e a quem cabe julgar se foi de menos ou demais?
Porque você fez tudo o que carecia ter feito, ser feito.”
Até: agora!
Daniele de Cassia Rotundo